sexta-feira, 30 de julho de 2010

Marizete, a verossímil.



Cuidava da mãe quase cadáver. Criava uma filha e o ódio pelo marido defunto que se suicidou por causa da vida de miséria. Era muito bom na cama, mas fraco com os pensamentos. Com ele não demorava a gozar. Ele sabia fazer. Mexia com os quadris como nenhum outro macho havia o feito com ela. Para isso ele era bom. Ah, ele mexia como ninguém. Mas tudo foi pelos ares com um tiro na cabeça. Não sabia onde ele tinha arranjado o revólver, aquele miserável. Era mesmo um imbecil. Deixou-lhe uma filha, uma única filha e sete abortos, e uma dívida no Banco do Brasil que ela nunca teria condições de pagar e para a qual não estava nem aí. Queria apenas continuar tendo coragem de agüentar o passar dos dias naquele barraco. Temia pela filha ainda menina e pela mãe, fraca e quase morta. Vez ou outra se deparava com um cadáver estendido nos fundos, de manhazinha. Tinha muita raiva quando isso acontecia. Medo também. Mas o medo ela escondia, assim como a fraqueza. Fingia como ela só. Lavava o rosto, penteava o cabelo puxando-o com força para trás até prendê-lo com elástico, com uma cara neutra, fingida.

Bebia para dormir. Uma garrafa da limpa era suficiente para, ao lado da filha e da mãe moribunda, acordar às 4:45 da manhã. Uma mulher ereta, parada ao pé da cama, amanhecendo sozinha, lavando o cabelo com sangue de galinha para dar brilho.

Em uma dessas manhãs, Larissa, sua filha, observava um bando de gente de pele bonita descendo de carros brilhantes, absorta. Vê dois pretos entre eles, suas peles não eram encardidas, brilhavam refletindo a luz do sol. Larissa, preta encardida, não entendia o que os dois faziam entre os outros. Usavam óculos escuros, máquinas fotográficas, cadernos e garrafinhas de água mineral. Todos sorriam exibindo dentes alvíssimos

- Tá fazendo aí o que, Larissa?

- Tem uns estudantes lá fora.

Zete esbaforida lavando roupa na lavanderia de cimento esburacada. Suspira pesado.

- Pega ali o balde e fecha a janela. Se lavou?

Larissa não responde e Zete a puxa pelo braço.

- Fecha essa porra! Já se lavou, Larissa? Hoje você come na escola.

Na porta, começam a bater. Três batidas comedidas. Ficam em silêncio. Outras três.

- Mãe, os estudan...

- Cala a boca.

Fala baixo, mas firme, com dedo indicador encostado nos lábios e olhos arregalados – Fique queta! - completa.

- Bom dia! – falam suavemente os de fora. D. Zete, podemos lhe fazer algumas perguntas sobre o bairro? É coisa rápida, não se preocupe.

Zete estava preocupada com os horários do emprego e da escola da menina. Achou melhor falar.

– A gente tá de saída! – E abriu a porta.

Duas estudantes. Peles limpas, claras e ensolaradas. Larissa parou novamente absorta. – Pois não? – disse Zete.

– A senhora trabalha no Lixão da Terra Dura?

– Não, Trabalho na cidade.

– A senhora sabe que seu barrac – a moça conteve a palavra – que sua casa está construída em cima de um morro que pode desabar com uma chuva forte?

- Ontem choveu pesado, mas o barraco é forte, ta aí, teso.

– Sua filha estuda?

- Sim – disse ligeira.

Não sabia que eram um objeto de estudo, mas odiava sê-lo. Descem e fecham o barraco com arame farpado. A mãe, esquecida, como em todas as manhãs.

- Menina, ande ligeiro. Por aí, não! Tem merda aí, não ta vendo?

Foram descendo e olhando para trás, as estudantes permaneceram paradas as observando.

- Vocês falaram com os caras para ficarem vadiando aqui em cima? – Questiona Zete voltando-se para as garotas. E elas começam a descer apressadas.

Zete deixou Larissa na escola e pegou o ônibus para a cidade. No condomínio dos patrões ela troca de roupa, pendura no banheiro de serviço as sandálias e o vestido marrom, surrado. Veste um uniforme cinza e branco. Pega o aspirador e uma flanela. Retoca o desodorante.

O patrão, Dr Alex, passa apressado e bate a porta. Zete liga o aspirador e começa a passá-lo no corredor.

- Marizete, entra aí.

Matilde, a patroa, escritora famosa de livros de auto-ajuda tem a cara branca marcada, cheia de vincos dos lençóis.

- Já fez sexo tântrico, Marizete?

Matilde sentada, de camisola, fumando. Um gole de Whisky sem gelo. Zete começa a passar o aspirador, engole arranhando. Pára dois segundos para entender e desliga o aspirador.

- Como é que é, D. Matilde? – espantada.

- Já fez sexo tântrico?

- Se a senhora já fez tanto sexo?

- Não, Zete. Deixa pra lá. A estúpida sou eu. Alex sugeriu que agora só fizéssemos sexo tântrico.

- O Seu Alex?

- É.

- Agora, D. Matilde, o que é isso? – curiosa.

- Penetração só depois de duas horas de carícias, no mínimo. E depois, então, o gozo.

- Mas como é isso? – retorce a cara sem acreditar.

- As pessoas se tocam, fazem massagens. Tocam o sexo assim, Marizete, mutuamente. Entram em transe, sabe? As pessoas conhecem um outro mundo.

Zete parecia que havia entendido. Pensou um segundo.

- Dá para mim não, D. Matilde - Ligou o aspirador, aproveitou o barulho do aparelho – Infeliz – sussurrou.

- Falou alguma coisa, Zete?

Desliga o aspirador.

- Não, D. Matilde – volta a ligar.

Matilde levanta, abre a cortina. Uma luz amarela se derrama no quarto.

- Nós fizemos essa noite.

Zete desliga o aspirador e começa a arrumar a cama.

- A senhora gostou?

- Dormi.

O dia passou como uma sensação de queda, rápido. E no final, o baque com a cara no duro vazio do tempo. Marizete já havia feito o supermercado, dado banho nos cachorros, aspirado o pó dos tapetes, lavado a louça e as janelas e espanado todas as cadeiras e poltronas da casa de Matilde. Eram muitas tarefas, todos os dias. Tinha que ser rápida. Era um mulher sem tempo para conversas. O sexo, quando dava, tinha que ser no fim de semana de madrugada, com Otávio, marido da Deó. Um sexo rápido, sem gozo, nunca igual ao do falecido, mas Otávio lhe trazia a bebida e isso bastava.

O dia seguinte veio como o anterior.



Onde estão as pessoas, hein?
Por que ninguém ama as pessoas, hein?
1234567891011121314151617181920212223242526272829303132333435363738394041424344454647484950
pensei que minha mãe tinha morrido!
dei um chute na porta e a arrebentei!

Na varanda dos fumantes,

No quinto andar,

O centro da cidade.


O vazio, o tempo.


a loucura





quarta-feira, 28 de julho de 2010

Comei, este é o meu corpo

Mange Ceci c' Est Mons Corps do diretor Michelange Quay me pegou de surpresa de maneira fabulosa.
Fiquei embasbacada em muitas das passagens do filme e, quando voltava para casa, cansada da jornada pesada que é participar de um Seminário como esse que estou participando: a gente dorme super-tarde, acorda super-cedo, vê as mesas, fica muito feliz por umas, fica p da fica com outras, come rápido para não perder nada, pega fone de ouvido para tradução das falas dos gringos que vêem falar aqui e que a gente muitas vezes fica pensando: por que isso, com tanta gente aqui no Brasil, né? Então: quando voltava há pouco para casa (e hoje voltamos cedo porque está rolando jogo na TV e os meninos queriam assistir e não rolava de eu ficar sozinha lá no teatro e voltar para casa tarde, seria perigoso...), no buso, pensava: quero escrever sobre esse filme, mas sei que não vou cosneguir. O que eu falar, seja o que for, agora, não vai passar sequer a idéia inicial do que é o filme.

Belo, quase nenhuma fala. Imagens fortes. O filme é de uma força tamanha. Desconstói muitas idéias clicherosas quanto aos haitianos e quanto às mulheres (senhoras) haitianas e por aí vai...
É realmente uma experiência cinematográfica hipnótica e visceral como promete na sinopse.



Tenho visto uns curta-metragens legais também e depois, organizo o pensamento e escrevo sobre os que mais gostei.
Um documentário muito, muito bom chamado Willian Kunstler - perturbando o universo também me surpreendeu. E para mim, os dois melhores filmes até aqui foram o "Comei, este é o meu corpo"e esse documentário sobre Willian Kunstler.
Amanhã, acho, vai rolar o filme da Helena Ignez, Canções de Baal. Estou ansiosa. Assim como estou para ver Lucrécia Martel amanhã.
De Pasolini, vendo apenas o que não tenho como ver de outra forma que não num evento assim. Pois uma crítica ferrenha que faço é quanto a idéia de que parece que somos onipresentes: pois rolam várias coisas ao mesmo tempo. não dá para ficar em mais de um lugar e, portanto, temos que fazer opções drásticas, do tipo "dos males, o menor".

Estou com saudades de todos vocês e sempre que estou num lugar assim, evoco exaustivamente vocês.
Ontem mesmo Rogério falou, depois de uma fala (que achamos complicada) de um gringo (Italianao) quanto à (homossexualidade de ) Pasolini, ele disse: "Queria que Jadson ou Wesley estivessem aqui, para saber o que é que eles pensam...".

Carrego vocês aqui dentro sempre. Na minha maquininha de fazer filmes: a cabeça e o coração.



terça-feira, 27 de julho de 2010

Uma do bregão aqui pra acalentar essa noite chuvosa de terça...


"Ei, moço, uma dose de Montila e uma coca ks, por favor!"...

Ronda


Composição: Paulo Vanzolini

De noite eu rondo a cidade
A lhe procurar, sem encontrar
No meio de olhares espio
Em todos os bares
Você não está...

Volto prá casa abatida
Desencantada da vida
O sonho, alegria me dá
Nele você está...

Ah! Se eu tivesse
Quem bem me quisesse
Esse alguém me diria
Desiste, essa busca é inútil
Eu não desistia ...

Porém com perfeita paciência
Volto a te buscar
Hei de encontrar
Bebendo com outras mulheres
Rolando dadinhos
Jogando bilhar...

E nesse dia então
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar
Da avenida São João...

Ah! Se eu tivesse
Quem bem me quisesse
Esse alguém me diria
Desiste, essa busca é inútil
Eu não desistia ...

Porém com perfeita paciência
Volto a te buscar
Hei de encontrar
Bebendo com outras mulheres
Rolando dadinhos
Jogando bilhar...

E nesse dia então
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar
Da avenida São João...


... faça o seguinte, me traga uma dose fingida de alcatrão... fingida! bota muito mel, que de amarga e verdadeira basta a vida!

O Ébrio

Composição: Vicente Celestino

Recitativo - Falado : Nasci artista. Fui cantor. Ainda pequeno levaram-me para uma escola de canto. O meu nome, pouco a pouco, foi crescendo, crescendo, até chegar aos píncaros da glória. Durante a minha trajetória artística tive vários amores. Todas elas juravam-me amor eterno, mas acabavam fugindo com outros, deixando-me a saudade e a dor. Uma noite, quando eu cantava a Tosca, uma jovem da primeira fila atirou-me uma flor. Essa jovem veio a ser mais tarde a minha legítima esposa. Um dia, quando eu cantava A Força do Destino, ela fugiu com outro, deixando-me uma carta, e na carta um adeus. Não pude mais cantar. Mais tarde, lembrei-me que ela, contudo, me havia deixado um pedacinho de seu eu: a minha filha. Uma pequenina boneca de carne que eu tinha o dever de educar. Voltei novamente a cantar mas só por amor à minha filha. Eduquei-a, fez-se moça, bonita... E uma noite, quando eu cantava ainda mais uma vez A Força do Destino, Deus levou a minha filha para nunca mais voltar. Daí pra cá eu fui caindo, caindo, passando dos teatros de alta categoria para os de mais baixa. Até que acabei por levar uma vaia cantando em pleno picadeiro de um circo. Nunca mais fui nada. Nada, não! Hoje, porque bebo a fim de esquecer a minha desventura, chamam-me ébrio. Ébrio...

Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer
Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou
Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer
Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou
Só nas tabernas é que encontro meu abrigo
cada colega de infortúnio é um grande amigo
Que embora tenham como eu seus sofrimentos
Me aconselham e aliviam o meu tormento
Já fui feliz e recebido com nobreza até
Nadava em ouro e tinha alcova de cetim
E a cada passo um grande amigo que depunha fé
E nos parentes... confiava, sim!
E hoje ao ver-me na miséria tudo vejo então
O falso lar que amava e que a chorar deixei
Cada parente, cada amigo, era um ladrão
Me abandonaram e roubaram o que amei
Falsos amigos, eu vos peço, imploro a chorar
Quando eu morrer, à minha campa nenhuma inscrição
Deixai que os vermes pouco a pouco venham terminar
Este ébrio triste e este triste coração
Quero somente que na campa em que eu repousar
Os ébrios loucos como eu venham depositar
Os seus segredos ao meu derradeiro abrigo
E suas lágrimas de dor ao peito amigo

Entre conversas de ônibus e festa em família


No último sábado viajei de Aracaju até a cidade de Socorro, bem, não o centro da cidade mas para um de seus tantos conjuntos residenciais: Marcos Freire I. Local onde residi por muito tempo e fiquem sabendo que apesar de ser longe gostei muito de ter passado minha semi-infância lá.
Era uma festa de família, meu tio mais novo estava aniversariando (no mês de Julho muitos de meus parentes oficiais fazem aniversário inclusive eu)e como me foi quase imposto a ida ao tal evento, saí de casa o mais tarde que pude e um pouco antes "calibrei os olhos" ( a viagem foi ótima!)peguei meu bornal e segui pro ponto. no ônibus que seguia do terminal DIA para o conjunto acima citado, estavam dois meninos com idade mais ou menos entre 13 e 15 anos, magros e afetadíssimos falam sobre os trâmites da Igreja Católica em Aracaju, bispo, padres, grupos de evangelização e coisas do tipo, mais engraçado foi passar por uma Igreja católica num bairro periférico e ver o seguinte anuncio " oração com o grupo: Chama de Amor", gente eu ri muito, muito mesmo, fiquei pensando na utilização da língua para a construção do nome do grupo, e o meu estado sensorio afetado pela THC me fez ir mais longe.
Festa de família é sempre festa em família, o que mais me deixou chateado, foi como sempre algunas declarações homofôbicas de algumas pessoas que gosto tanto, mas fazer o que né?fazer uma cruzada contraa introjeção de anos de preconceitos? não estava disposto, não vale a pena sabe.....
fiquei impressionado que tinham uns quatros afetados na festa, um casal formado pelo cunhado de meu tio e um amigo deles e uma criatura que nunca vi era amigo da namorada de meu tio, em um determinado momento minha mãe, dona Dilma Teles, puxou um deles para dençar de forma bem afetada, o mesmo recusou, eu fiquei com vergonha mas não disse nada.
Depois quando voltava para casa fiquei pensando se estava eu estava certo ou errado em ficar calado, mas enfim talvez em outro ambiante eu reividicasse, talvez se eu fosse mais capaz, mas autonomo, talvez...

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Kagolândia vem aí... Aguardem!

Pessoas, cabe aqui uma ligeira explicação quanto ao título do post: prometo-lhes uma série de escrevinhança divertido-poético-filosófica homônima.
Não dá para explicar muito, pois são nove e meia da manhã e eu vou viajar logo mais às 11:30h.
 Além do que estou com grandes e muitas idéias para a série (em especial títulos para a mesma), porém sem inspiração para principiar a escrevê-las.
Ainda devo confessar que uma vez desenvolvida a tal idéia, a mesma se deu a partir de uma conversa profunda com Tatiana Hora sobre TPM, idiossincrasias, viagens e...(ai, que não me seguro) coisas do tipo "cagando com a turma da Mônica".
Enfim, já estou com saudades dos amigos queridos, mas espero aproveitar bastante o Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual assistindo muito Pasolini e vendo o que é que Lucrécia Martel tem para me falar...
Que venha Salvador, então!

sexta-feira, 23 de julho de 2010

MINHA BOCA LASCOU HOJE!

Fazia um bom tempo que eu não trabalhava tanto quanto hoje.
Tanto que, em dado momento da noite, estive diante do marido de um nutricionista.
Este me disse que eu estava bebendo pouca água.
Eu estou bebendo pouca água?
Se sim, por que estou com vontade de mijar agora?!
Aqui comigo, trabalha um menino que mija de vez em quando.
De vez em quando também, a gente se cruza no banheiro.
Eu rio com a coincidência espacial, mas ele não gostou disso.
Por isso, bebo mais e mais água.
De maneira que teve um momento que eu atendi ao marido de um nutricionista.
Este me disse que eu estava bebendo pouca água?
Eu vou beber água agora, volto já.

(...)

Pronto, voltei!
Aproveitei e mijei também.
Aproveitei que já estava no banheiro e me olhei no espelho.
Ao me olhar no espelho, percebei que meus lábios estavam lascados.
Talvez eu tenha me estressado demais.
Talvez eu tenha bebido pouca água.
Talvez eu não tenha trabalhado tanto quanto hoje nos últimos dias.
E estou vestindo uma camisa vermelha, mais velha e bonita que esta da foto.
E me deu vontade de beber água de novo...
Mas vou esperar um pouco.
Estou baixando um filme do Takashi Miike.
Além disso, vou trabalhar amanhã.
Além de amanhã, vou trabalhar domingo.
Além de domingo, vou trabalhar segunda.
E terça.
E quarta.
E quinta.
E sexta.
E minha boca...

Wesley PC>

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Entre em contato

Entre em contato comigo,
Mas não me mande correspondência.

Entre em contato comigo,
E nada verbalize.
Não gesticule para que eu entenda.

Minha "lonjura" É
Onde me faço ininteligível?
Entre em contato comigo
Para que eu entenda que não dei
Um passo sequer desse espaço de palavras.

Entre em contato comigo
Porque sei que eu não estou sozinho
Em certo ponto de minha máxima distância.


(Tiago de Oliveira)

Meu paraíso

Sempre imaginei o paraíso como uma grande biblioteca. (Jorge Luis Borges)
Por esses dias habitei numa biblioteca. Fugi de minha cidade natal segunda-feira à noite, depois de duas cervejas com uma amiga e depois (que veio antes bem antes) de perceber que eu estava pirando na cidade.
Precisava viver um clima de cidade de interior. Sair de casa e chegar aos lugares caminhando, sem precisar esperar e pegar ônibus. E precisava estudar. Lá eu não estava conseguindo me concentrar. Tudo era motivação para me desviar dos fichamentos dos livros e da escrevinhança do artigo para, enfim, encerrar o período letivo.
A Bicamp (Biblioteca do Campus de Itabaiana) tem um acervo legal. Nada mal. Especialmente o ainda não catalogado e, portanto, disponível apenas para consulta in loco.
Fui criada entre livros. Minha mãe trabalhava na sala de leitura da escola onde eu estudava. Ela estava afastada da sala de aula por conta de um calo na garganta. Por isso aquela voz dela rouca, grave, sensual.
E eu aprendi o fascínio de conviver com os livros, com suas histórias e personagens. E sempre imaginei o paraíso como uma grande biblioteca. Pois a sala de leitura era par mim, muitas vezes, fuga da sala de aula onde as coisas se davam de maneira monótona, disciplinar demais e amorosa de menos.
Na sala de Rodolfo (amigo que trabalha na Bicamp), mais livros: em processo de catalogação e outros para serem restaurados.
A idéia de restauração me fascinou como se eu tivesse de novo do alto de meus cinco anos de idade.
De repente eu era aquela guria loirinha e perguntadeira de antes.
Bombardeei Rodolfo de perguntas e ficava imaginando o processo de restauração dos livros como quase igual ao milagre da multiplicação dos peixes ou dos pães.
O fantástico se apossou de mim.
Imaginei as mãos que restauram livros. todas as mãos do mundo. O cheiro de papel e de cola. A paciência, a dedicação para a restauração. O milagre da renovação. O livro amarelado, poeirento, com páginas frágeis quase virando material para reciclar, sendo transformado, ajeitado, cuidado. Para, assim, continuar compondo as prateleiras das bibliotecas, para continuar sendo companhia da gente.
Imaginei a prática da restauração como uma prática amorosa que se faz devagar, com presteza e atenção.
Uma prática corpórea, sensual.
Os homens e mulheres restauradoras com seus livros nas mãos, sobre as mesas, ressiginificando-os. Soprando-lhes vida nova.

Memórias

Lendo os últimos textos dos membros mais atuantes deste blog, me deu uma vontade de relembrar coisas, mais acho que tenho medo, enquanto isso anuncio que Li "Agua viva" de Clarice Lispector, presente de uns amiguinhos eróticos de uma sentada só, sentei e li e nossa fui tomado de com força, sabe aquilo que faz voce parar e respirar profundamente, eu Deus, meu "it" E AGORA?

Gente depois eu falo mais....

beijos

Jadson

Sentimental bairrismo ou necessidade de re-conhecer?

Hoje estou sentimental (e bairrista?). Vontade de haver um poeta para cantar essa minha terra. Tão misturada. Tão contraditória. Tão dentro de mim. Gosto de pisar nesse chão. Mesmo que eu fale, tantas vezes mal. Hoje vi um homem carregando um boi pela feira, pelo centro de uma cidade do interior. Crianças de uma escola, na hora da recreação, cantaram: "Boi, boi, boi, boi da cara preta/ pega essa menina que tem medo de careta...
Ontem, vi um velhinho, corcunda, andando quase emborcado...
As caras tão marcadas. As velhas com coques na cabeça. As motos e os cavalos convivendo num mesmo espaço caótico, entremeeiro, nonsense.
Quero muito poder ainda viver os muitos lugares daqui de Sergipe. As cachoeiras da Ribeira, as praias em Pirambu, as cidades, a região da Grota do Angico que me encantou tanto quando fui lá: a carvalhada, as pessoas que carregam o mito de Lampião como parte de suas histórias de vida.
E, tanta coisa que nem posso falar/descrever pelo fato de eu ter 28 anos e conhecer tão pouco ou mesmo não conhecer nada.
E, acho que por isso, tantas vezes para mim é fácil me encantar com outras terras, outros lugares que não esse aqui tão vivo, tão pulsante, tão latente e tão despercebido.

O sonho dos poetas

"(...) lembro-me bem
Que nas aparências da vida cotidiana
Acreditei, naquele tempo, perceber claramente
Um mundo novo, um mundo que valia a pena
Ser comunicado, e a outros olhos
Tornar-se visível".


Acredito muito que esse também é um dos (muito e muito variados) motivos para escrever.



P.S.: o exceto é de Willima Wordsworth.

Não há luar como esse do sertão...

Dia desses, fui a um sítio localizado em um interior  em Itabaiana (portanto, bem pertinho de Aracaju) chamado Sambaíba.
Lá, passei toda a tarde e um bom pedaço da noite. Comemos amendoins colhidos e cozidos assim: na hora. Jogávamos as cascas na terra e sabíamos que as galinhas e as cabras viriam comê-las.
O tempo era longo, desmanchado, lento. O feijão verde do almoço foi colhido e cozido da mesma forma. O limão, a laranja, o maracujá para a cachaça: idem.
Os cheiros característicos: fortes ou suaves demais inebriavam. O barulho do vento nas árvores, nas plantas descansava os ouvidos acostumados a barulho de carros, a buzinas e freadas.
Quando a noite veio, no céu a lua era minguante. Mas, nem por isso, menos faceira. Bonita, tomando forma, mais parecia adolescente que procura seu lugar no mundo, que procura significar uma nova corporeidade que simplesmente lhe toma.
A noite trouxe outros sons. O coaxar de muitos sapos, as cigarras, os grilos. Os sapos pareciam uma grande comunidade de políticos que discursavam, que debatiam assuntos comuns e importantes.
O vento frio, criava um clima agradável.
E, depois de tanta cachaça, esquentamo-nos com café. Puro. Cheiroso.
Eu não queria mais sair de lá.
E ainda tinha a presença de Zé Arnaldo. Caseiro do sítio. Sua mulher, arredia, dessas "envergonhadas", como eles dizem, passava sempre muito longe, distante, olhando de soslaio.
Mas, Zé Arnaldo ficou entre a gente e conversava muito. Contava suas aventuras da época em que bebia muito e, que uma vez bêbado, virava valente, queria brigar com todo mundo.
Zé Arnaldo começava com o 21 e depois "rebatia a bucha" com cerveja.
Ameaçava a mulher, dava murro no dono do bar. E, no outro dia, Zé Arnaldo não lembrava de nada. Contavam-lhe suas astúcias e ele ia, envergonhado, pedir desculpas.
Foi uma tarde boa.
Quando fomos embora, passamos por um caminho de terra molhada. O carro que nos levara havia atolado na frente, na porta do sítio e fomos escorregando, afundando os pés na lama até lá. Em fila indiana: eu, Rogério, Paulo, Fernanda, o casal que nos recebera e Zé Arnaldo.
Zé Arnaldo nos ajudava, segurava as nossas mãos, apoiava moralmente na travessia.
Durante a tarde toda, notei uma tatuagem em seu ante-braço. Quis perguntar, mas fiquei encabulada.
Quando nos despedimos de verdade, percebi um nó em minha garganta. Eu sentiria falta de Zé Arnaldo. De sua magreza, de sua solicitude, de sua amizade.
Zé Arnaldo dividira uma boa parte a vida dele comigo, num alpendre do sítio. De sua viagem à Salvador, de sua infância, de seus estudos até a 4ª série, de uma cadelinha que ele teve e que se chamava Bolinha.
Zé Arnaldo me contou o seu grande sonho: comprar uma casinha.
Disse-lhe adeus com um sentimento de perda.
Na estrada, de volta, olhava o breu ao lado. Sentia o cheiro forte da mata. Coloquei a cabeça para fora da janela do carro e olhei o céu. Azul escuro. Cheio de estrelas. Todas elas tão coladas, meu Deus.
Lembrei de minha mãe. De minha infância. E pensei: Zé Arnaldo, será mais uma lembrança querida. Dessas que a gente não fala, mas sente.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Vovô Zé


Ocorreram-me lembranças de meu avô Zé. Recordo agora dos dias em que me ensinava a andar de bicicleta em Estância. Lembro como ele gritava quando eu disparava em sua bicicleta de adulto, alta e pesada. Treináva-mos perto de um lugar que servia meio como um lixão em um bairro industrial da cidade. Vezenquando eu caía sobre montes de lixo e ele gritava: olha os vidros, Tiago! Tiaago! Meniiino! Eu achava tudo muito engraçado e ria. Nessa época já sofria de ausências, nessas horas não sei onde estava meu avô. E isso é estranho.


Meu avô Zé era um homem forte. Tinha sido, quando mais moço, jogador de futebol. Lembro-me que ele tinha uma caixinha de metal com um monte de coisas fascinantes dentro: um relógio de bolso, um vasinho de perfume que nunca secava em forma de coração, fotos dele e de minha avó. A caixinha ficava em baixo da cama, sempre. Às vezes fechada com um cadeadinho minúsculo.


Todos esperavam ele chegar de não sei onde para começarmos a almoçar, confesso que isso deveras me irritava, mas eram ordens da minha avó Eugênia, que usava remédios controlados. E o “deveras” peguei dele. Mas ele dizia “é de vera...” mas, era assim, devagar e comprido, “é de veeera”, com uma voz grossa e macia, admirado com alguma coisa. Sentávamos então à mesa. Ele começava a misturar toda a comida, feijão, arroz, farinha, ao mesmo tempo em que chupava uma laranja grande, que cortava com uma faquinha que ele mesmo fabricara quando trabalhava. Minha avó exigia então que rezássemos, e nós, evidentemente, obedecíamos. Eu repetia “obrigado Deus, obrigado Deus, obrigado Deus, obrigado Deus”, sem nem saber o que de fato estava fazendo, até quando minha avó começava a comer e eu, morto de fome, metia apressado o garfo no prato.


Em junho de 96, minha avó teve umas complicações cardíacas e faleceu. Em dezembro do mesmo ano meu avô teve um derrame cerebral. Ele não queria comer nada e começou a definhar. Eu ia visitá-lo e tentava animá-lo chamando-o de Seu Zé e sentando do lado dele. Dava um meio sorriso por conta da paralisia provocada pelo derrame e apertava a minha mão. Apertava de um jeito que agora lembro com o coração apertado. Que saudade que agora tá me dando de meu vovô Zé. Depois de tantos anos parece que agora percebi que perdi um amigo. Mas onde estavam essas lembranças?

Ele morreu em janeiro de 97, não lembro bem o dia. Mas não fora um dia triste. Estranho, mas não fora. Lembro que a morte não tinha o significado que agora tem pra mim, essa interrupção. O que me vem agora como estranha interrogação é: Por que em minha memória ele tinha desaparecido? Éramos amigos, ora. Dá-me certa raiva em ter que encarar essa desconsideração de minha parte. Que idiota que sou por isso. Aprendi tanta coisa besta durante todos esses anos sem meu avô Zé. Tanta coisa inútil, “sem valia” (outra expressão dele). Nunca achei que eu fosse rememorá-lo assim um dia. Porque tudo parecia estar morto, enterrado no jazigo do meu avô. Agora eu percebo que estava tudo apenas guardado. Como se dentro de um criado-mudo esquecido e invisível que a gente passa, olha, passa, se esbarra, mas que continua invisível.


Tiago de Oliveira