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sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Notícias do mundo de cá: o nascimento de uma criança - reflexões para o mundo dos mortos ou do silenciamento

Fumei um cigarro preto hoje. Negro era o meu semblante. Negra a interrogação quanto ao meu futuro. O que desejo de verdade?
Inconformada eu? Nem sei do que não me (in)conformo ou o que mesmo desejo. Porque do impossível eu já sei que não se fala.
O cigarro negro da solidão que venho fumando desde mesmo quando você era viva e estava comigo estranhamente não amarga na boca. Amarga por dentro quando sabemos da possibilidade do câncer. Do câncer que ferra a vida, a alma e a fala da gente.
Fumávamos as duas desse cigarro, mamãe. Você na sua geração e eu na minha. Você e eu fumávamos desse cigarro mesmo quando não fumávamos nada e quando não havia fumaça.
Lembrávamos de um tempo que não chegamos a viver. Também eu não vou chegar lá.
Ontem soube do nascimento de mais uma criança em nossa família. Eles também não me procuram. Como antes, estamos sós. Estou só.
Há uma outra família. A qual não pertenço, mas que diz ter-me abraçado por conta de um dos membros. Há uma linha de não-entrega tão demarcada que muitas vezes eu rio, sabia?
Lá eu como, durmo, tomo banho. Mas, não sou. Lá eles são eles e eu a parte. Mas, as pessoas, mamãe, continuam a fingir. Também eu o faço. Mas, não muito bem, pois sempre em crise. Vivo sempre em crise.
Sabia que nunca mais um abraço de verdade? Nunca mais ninguém tirou cravos de minhas costas. Eles saem no banho, com os óleos com os quais tomo banho. É. Tenho tentado parecer um pouco com você. Assim, os óleos durante os banhos e os hidratantes depois.
Outro dia achei um dos que você usava. O cheiro me emocionou. Mas, não havia muito sentido em dividir isso com outra pessoa.
Este é um escrito desorganizado. Como sou desorganizada.
Como é possível, mamãe, alguém como eu, hein?
Nasci mesmo assim? Fui-me transformando? O processo sempre foi silencioso? Será sempre?
Enfim, são tantas coisas. Algumas dizíveis sim, mas não por ora. Por ora, só a negra fumaça do cigarro da solidão.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Rabbits

Rabbits é uma série, dirigida por David Lynch, com oito episódios e, ao todo, dura mais ou menos 43 minutos.
São trÊs atores vestidos de coelhos, numa sala, a falarem coisas desconectadas uns com os outros. A cada entrada ou a cada uma ou outra descomunicação, ouvimos aplausos de um público, o que nos remete a programas cômicos de TV.
Nunca havia assistido outra coisa de Lynch que o Veludo Azul. A bactéria, a prostração, a insônia, me levaram a essa vontade de vê-lo mais.
Assim que terminei de assistir à série, que vim a saber é denominada por websisódios, uma vez que parece estar disponível no site do diretor, liguei para Jadson. Queria compreender, não no sentido já escrito e debatido por Tiaguinho, mas o problema é que nem mesmo sentir eu conseguia. Não me capturou nem pelo inteligível nem, pelo sensível e nem me deixoud esgrudar os olhos dos tais websisódios.
Queria ir até o final para saber se haveria algo mais. Os planos mais lembraram-me teatro filmado. Os sons, muitas vezes irritam. Assim como a ininteligibilidade. E o problema nem era eu não alcançar ou me sentir pequena por conta da não alcançabilidade. O problema era: o que é que ele qeuria com aquilo? O que transgredia? um jeito de se fazer cinema? Um costume de uma classe? O comprotamento do ser humano? A incomunicabilidade?
Jadson não havia assistido. E eu prometi que se eu procurasse explicações com as pessoas, na Internet, nos lviros, fosse onde fosse e a encontrasse, eu prometi que trataria de qualquer assunto, eu mesma, falando em árabe, em alemão, russo, japonês, de agora em diante.
Vim para o mais rápido e fácil: a lan hause. Não encotnrei grandes coisas que fosse diferentes das impressões que tive ao assistir à série.
Li coisas sobre o diretor ser "um profissional hiperativo que diz não conseguir ficar parado, sempre buscando alguma forma de realizar seu trabalho, seja no cinema, na tv, na fotografia ou em mídias experimentais como foi o caso de Rabbits, lançado inicialmente em seu site como websisódios".
Tenho que admitir que Rabbits é estranho, diferente e que vale a pena ver e buscar. Buscar não sei ainda o quê. Quem puder e quiser: me ajude.

E eu, assim imersa em bactéria e em David Lynch, quando escrevia esse post, recebi ligação de Wesley PC. Claro que não acho que seja por acaso.
 Ele me esclareceu coisas sobre o diretor, incluive falou sobre a saturação disso de ele ser sempre ininteligível, que ultimamente tem sido um teipo de "forçação de barra". Wesley junto com Jadson são dois monstrinhos comedores de filmes, né? Não viram essa tal de websisódio, mas sempre salvam, ajudam, esclarecem.
Vou continuar assistindo David Lynch. Já não vou me assustar com nada.
Gostei muito de Inland Empire. Vou olhar de novo para Rabbits. E tomara que essa bactéria saia logo de mim, porque revendo Naked Lunch, de David Cronenberg, quase senti uma enorme centopéia em minha garganta (invenção pura essa minha, agora) de tanto ela coçar.
Juro que o barato do pó, do inceticida, no filme, quase me fez espirrar e enxergar uma grande barata com boca falante e desejante de pó no meu velho computador!
Claro que o bichinho do qual mais gosto, no filme, é aquele quase escorpião meio bunda, meio pinto...
Ok. Isso não é um jeito bom de analisar nem de falar de filmes, né?
Além de infectada por bactérias, estou ficando sacrílega. Tmabém, pudera! Por que raios no Brasil não é Almoço Nu o nome do filme e sim "Mistérios e paixões", hein?
Bem, deixa eu voltar para meus contos, porque o cinema está me deixando confusa...


sexta-feira, 2 de julho de 2010

Contando ovelhas – ou insônia danada, se vocês quiserem.



Ouço uma música bonita. Simples. Cantada em outra língua. Fala de amor? Não sei. A melodia me faz quase fechar os olhos e voar daqui. Para onde?
São ovelhas que conto para dormir. Ponho chapéu, laços, botas, pinto-as a cada uma de uma cor. Dou vida a essas minhas ovelhinhas. Serelepes algumas. Outras gordas, nem pulam. Apenas fazem méééééé e se mexem, ousadas, robustas. Gostosas, até. Gordura é sinal de formosura, meu bem! Pula, ovelhinha, pula! Não posso empacar no cem. Quero ir até mil, ouviu fofinha?
Fofinha é o caralho! Não vou desmanchar meu vestido assim pulando por causa de uma louca insone. Vou ficar aqui. Não me arrisco em cerca qualquer.
Volto do cem mesmo. Essa não pula nem a pau. Encontro ovelhas legais. Uma que viu um E.T. tem os olhos esbugalhados e parece doidona, tadinha. Feliz? Marijuana? Ou E.T. mesmo? Eu vi a luz. Era E.T., minha gente. Ela tem até a lã bagunçada, arrepiada, sei lá. Não, não é punk essa ovelha. A outra sim. Essa viu mesmo extraterrestre. E, por isso, também não quer pular, a desgracida.
Assim o sono não vem nunca!
Uma é gostosa demais par pular. A outra, é maluca, meu Deus!
Imagino que vou me deparar com uma ilustração do kama sutra quando chegar a ovelha de número 69.
Não. Mas, confesso que estava ansiosa. Mas, essa pulou rapidinho. Era bem normalzinha a de número 69... Opa! Pulou a cerca mesmo, MESMO! Vejo-a, a de número 69, do outro lado. Tinha uma cartola na cabeça e agora, agora ela está na posição que supus. Mas, não é do carneirinho a lingüinha ilustrativa. É de um sapo! Verde! Grande Gordo sapo de língua...todos sabem bem como é que é a língua dos sapos. Eles a lançam longe em busca de mosquitos, de moscas. E a simples ovelhinha soube bem me enganar e distrair! Essa foi a melhor pulada de cerca que uma ovelha poderia pular nas minhas insônias! Sapos são sapos com suas línguas e não são príncipes não. Danada!
Já pulei cem ovelhas. Cem não, noventa e nove. Noventa e nove não, noventa e oito. Por conta da gostosa e a doidona, né? A do 69 pulou sim e pulou feliz da vida ao encontrar um sapo de firme língua (ambígua).
De todos os tipos. As ovelhas. Quase todas as noites. As que não tomo diazepan. Com paz. Bonito nome diazepínico. Compaz.
Voltei as noventa e oito. Sempre assim: primeiro, cem da direita para a esquerda. Depois, voltam da esquerda para a direita. 1, 2, 3, 4...100. Então: 100, 99, 98...3, 2, 1.
Encontro cada ovelha nesses descaminhos, que só eu sei! Mas, agora, escuto uma música bonita. Simples. Cantada em outra língua. Fala de amor? Não sei. A melodia me faz quase fechar os olhos e voar daqui. Para onde?
Os olhos pesados, pesados. É uma ovelha. Com violão. Country é o que ela toca.
Voar, voar. Cadê a do E.T.? Meu Deus. Voar para onde?????????
                                                                                             

domingo, 30 de maio de 2010

Hilda Hilst










Gente! Estou imparável hoje com essas (minhas) mulheres.

Ando mesmo querendo repensar o uso de pronomes possessivos nas falas que divido comigo mesma e com os outros. Mas, uma dificuldade: a Literatura. Os livros, as personagens, as escritoras (e os escritores) que amo, que me rodeiam. Eu acabo feito criança que diz que tudo é seu. Assim tendo a escrever/falar: minhas escritoras, meus lviros, meus textos...Valei-me senhor são brás dos egoísmos inocentes e sem intenção de o ser!

Eis uma das minhas escritoras prediletas. Gurua de minha vida!

E.G.E. (ESQUADRÃO GERIÁTRICO DE EXTERMÍNIO) - Hilda Hilst

(Segunda-feira, 3 de maio de 1993)

O poeta pode ser violento. A maior parte das vezes contra si mesmo. Um tiro no peito, gás, veneno, um tiro na boca, como fez Hemingway, que também foi poeta em O Velho e o Mar; Maiakóvski, um tiro no peito; Sylvia Plath, gás de cozinha; Ana Cristina César, um salto pelos ares; etc etc etc. "Os delicados preferem morrer", dizia Drummond. Mas esta modesta articulista, sobretudo poeta, diante das denúncias feitas pela revista Veja, todos aqueles poços perfurados em prol de uma única pessoa ou em prol de amiguelhos de sua excelência, presidente da Câmara, senhor Inocêncio (a indústria da seca), e o outro com seu lindo carro às custas de gaze e esparadrapo... Credo, gente, quando você vê televisão ou in loco o povão famélico, desdentado, mirrado... Um amigo meu foi para o Ceará e passou os dias chorando! As crianças todas tortas, todos pedindo comida sem parar... e 500 toneladas de farinha apodrecendo... e montes de feijão desviados para uma só pessoa... (um parênteses, porque meu coração de poeta pede a forca, o fuzilamento, cadeia, cadeia para aqueles que se locupletam à custa da miséria absoluta, da dor, da doença). Gente, eu já estou uma fúria e para ficar mais calma proponho algumas coisas mais sutis, por exemplo: o Esquadrão Geriátrico de Extermínio, a sigla óbvia seria EGE. Arregimentaríamos várias senhoras da terceira idade, eu inclusive, lógico, e com nossas bengalinhas em ponta, uma ponta-estilete besuntada de curare (alguns jovens recrutas amigos viajariam até os Txucarramãe ou os Kranhacarore para consegui-lo) nos comícios, nos palanques, nas Câmaras, no Senado, espetaríamos as perniciosas nádegas ou o distinto buraco malcheiroso desses vilões, nós, velhinhas misturadas às massas, e assim ninguém nos notaria, como ninguém nunca nota a velhice. Nossas vidas ficariam dilatadas de significado, ó que beleza espetar bundões assassinos, nós faceiras matadoras de monstros!

O curare é altamente eficiente, provoca rapidinho a paralisia completa de todos os músculos transversais (bunda é transversal?) e em seguidinha sobrevém a morte por parada respiratória. Ficaríamos todas ao redor do coitadinho, abanando: óóóó, morreu é? Um pedido ao presidente Itamar: severidade, excelência, é ignominioso, indigno, insultante para todos nós, deste pobre Brasil tão saqueado, que essas terríveis denúncias terminem no vazio, no nada, na impunidade. É sobretudo perigoso porque:

de cima do palanque

de cima da alta poltrona estofada

de cima da rampa

olhar de cima

LÍDERES, o povo

Não é paisagem

Nem mansa geografia

Para a voragem

Do vosso olho.

POVO, POLVO

UM DIA.

O povo não é o rio

De mínimas águas

Sempre iguais.

Mais fundo, mais além

E por onde navegais

Uma nova canção

De um novo mundo.

E sem sorrir

Vos digo:

O povo não é

Esse pretenso ovo

Que fingis alisar,

Essa superfície

Que jamais castiga

Vossos dedos furtivos.

POVO. POLVO.

LÚCIDA VIGÍLIA.

UM DIA.


Fluxo-floema - Hilda Hilst (uma forma de amor: entregar textos-vida assim: puft! "Entrego-vos este assim: puft! Preciso dizer: amo-os?)



Osmo

Enfim, o existir não me confunde nada. O que me confunde é a vontade súbita de me dizer, de me confessar, às vezes eu penso que alguém está dentro de mim, não alguém totalmente desconhecido, mas alguém que se parece a mim mesmo, que tem delicadas excrescências, uns pontos rosados, outros mais escuros, um rosado vermelho indefinido, e quando chego bem perto dos pequenos círculos, quando tento fixá-los, vejo que eles têm vida própria, que não são imóveis como os poros de Mirtza, que eles se contraem, se expandem, que eles estão à espera... de quê? De meus atos. Não meus atos cotidianos, nada disso de se levantar da cama, tomar resoluções, banho caminhar, não é nada disso, talvez em alguns dias, quem sabe, esses pequenos atos se encadeiem de modo me levar ao grande ato, não sei, preciso refletir mais demoradamente, e chamo o meu ato de grande ato não porque ele tenha importância para mim, para mim é simples, é apenas muito estimulante, mas o grande ato deve ter importância para a maior parte das gentes, ah, isto eu sinto que é verdade, porque se não tivesse importância eu não me confundiria tanto, quero dizer, eu não ficaria tão em dúvida quanto à possibilidade de me dizer aos outros, de me confessar. E quando faço o que convencionei chamar de “o grande ato”, vejo que um daqueles pontos rosados se fecha, cicatriza, é como se nunca ele tivesse existido, porque a pele desse outro alguém que está dentro de mim, a pele do dono desses pontos rosados, só deseja uma coisa: desfazer-se das delicadas excrescências. Quando eu penso em todas essas coisas, penso também na dificuldade de descrevê-las com nitidez para todos vocês. Vocês são muitos, ou não? Gostaria de me confessar a muitos, gostaria de ter uma praça, um descampado talvez fosse melhor, porque no descampado, olhando para todos os lados (não se preocupem com as minhas rimas internas) para essa coisa de norte sul leste oeste, vocês compreenderiam com maior clareza, vocês respirariam mais facilmente, e poderiam vomitar também sem a preocupação de sujar o cimento, poderiam vomitar e jogar em seguida um pouco de terra sobre o vômito, e quem sabe depois vocês fariam pequenas bolas com todos os vômitos, naturalmente usando luvas especiais, claro, e lançariam as bolas com ferocidade sobre mim. E se houvesse alguém parecido comigo, eu o colocaria ao meu lado, e quem sabe depois viria mais alguém, e outros e muitos, e ficasse um apenas, a atirar o seu bolo de vômito e terra sobre nós, isso seria o ideal porque poderíamos organizar uma bela partida de beisebol, beisebol sim, beisebol é mais vida, a bola a gente agarra, a gente abraça, a gente encosta no peito. Beisebol sim. Incrível. Eu não imaginava conseguir dizer tanto. Incrível. Eu sempre me penso fechado, sobre mim uma lâmina de pura resistência, uma lâmina coesa, fosca, uma lâmina sobre os meus costados, chegando até a cabeça, em forma de viseira, se colocando depois sobre o meu rosto, e eu carrego esta lâmina e ando um pouco agachado, assim como esses velhos que têm sempre um feixe de lenha sobre os ombros, e olhem que eu sou bem alto, e assim mesmo me seu agachado. (...) Penso: vocês não serão culpados do meu grande ato?

O Unicórnio

Dizem que todos os pervertidos sexuais têm mau caráter. Dizem, eu sei. Você acredita? Acredito sim. No aspecto físico ela era uma adolescente sem espinhas. E ele? Espere, quero falar mais dela. Muito bem, espinhas então. Isso não é tudo. Quando ela me falava de sexo, debaixo da figueira, eu começava a rir inevitavelmente. Que coisa saberia do sexo aquela adolescente limpinha? E depois, veja bem se era possível levar a sério: ela usava uma calcinha onde havia um gatinho pintado. Quê? Juro. Você viu a calcinha? A calcinha foi pendurada certa vez num prego do banheiro: você jura que eu estou vendo um gato pintado na tua calcinha? Ela sorriu. Mas o gato teria por certo uma finalidade. Que finalidade pode ter um gato pintado numa calcinha? É, moça, não sei essas coisas são complicadas, podem ser ingênuas e engraçadas para você e muito eficientes, assim, no plano erótico, para o outro. É, isso é. E o irmão? Espere, quero falar mais dela. Um gato, então. Muito criativo. Mas havia mais. Mais do que um? Não, não, havia uma certa escuridão no olhar, principalmente quando ela estava perto dele. Do irmão? É. Ela tinha medo do irmão? A escuridão vinha do medo? A escuridão talvez viesse do medo de se sentir com medo. A mãe era uma possessiva gorda. Espere um pouco, você vai falar da mãe? Não, quero falar mais dela. Quando eu a vi pela primeira vez, ela mantinha uma postura de humildade. A palavra postura é palavra de uma das minhas velhas amigas, uma que queria ser santa e sábia. De início, vamos chamá-la “a sábia”. Era escritora. Chorava quando escrevia. Você vai falar da sábia? Não, ainda quero falar da outra. Então paramos...ah, sim, uma postura de humildade. Foi isso que eu disse? Exatamente assim. Mas era humildade e temor. Depois veremos. Naquela tarde eu dizia uns poemas na biblioteca da cidade, em memória de um amigo poeta. Ela disse: é bonita a sua poesia. Eu fiquei comovida, eu me comovo com tudo. É, vê-se, vê-se. Combinamos que ela iria a minha casa. Foi. O irmão também.

Com os meus olhos de cão - Hilda Hilst


Deus? Uma superfície de gelo ancorada no riso. Isso era Deus. Ainda assim tentava agarrar-se àquele nada, deslizava geladas cambalhotas até encontrar o cordame grosso da âncora e descia em direção àquele riso. Tocou-se. Estava vivo sim. Quando menino perguntou à mãe: e o cachorro? A mãe: o cachorro morreu. Então atirou-se à terra coalhada de abóboras, colou-se a uma toda torta, cilindro e cabeça ocre, e esgoelou: como morreu? como morreu? O pai: mulher, esse menino é idiota, tira ele de cima dessa abóbora. Morreu. Fodeu-se disse o pai, assim ó, fechou os dedos da mão esquerda sobre a palma espalmada da direita, repetiu: fodeu-se. Assim é que soube da morte. Amós Kéres, quarenta e oito anos, matemático, parou o carro no topo da pequena colina, abriu a porta e desceu. De onde estava via o edifício da Universidade. Prostíbulos Igreja Estado Universidade. Todos se pareciam. Cochichos, confissões, vaidade, discursos, paramentos, obscenidades, confraria. O reitor: professor Amós Kéres, certos rumores chegaram ao meu conhecimento. Pois não. Quer um café? Não. O reitor tira os óculos. Mastiga suavemente uma das hastes. Não quer mesmo um café? Obrigado não. Bem, vejamos, eu compreendo que matemática pura evite as evidências, gosta de Bertrand Russell, professor Amós? Sim. Bem, saiba que jamais esqueci uma certa frase em algum de seus magníficos livros. Dos meus? O senhor escreveu algum livro, professor? Não. Falos dos livros de Bertrand Russell. Ah. E a frase é a seguinte: “a evidência é sempre inimiga da exatidão”. Claro. Pois bem, o que sei sobre suas aulas é que não só elas não são nada evidentes como... perdão, professor, alô alô, claro minha querida, evidente que sou eu, agora estou ocupado, claro meu bem, então vai levá-lo ao dentista, sei sei... Amós passou a língua sobre as gengivas. Também deveria ir ao dentista, (claro que ele tem que ir) com a idade tudo vai piorando ele chegou a me dizer da última vez, quando foi mesmo? não importa, mas disse senhor Amós há uma tensão em toda sua mandíbula, tensão de um executivo falindo, é fantástico, o senhor não acorda com dores nos maxilares? Acordo. Então é isso, temos de acertar a sua arcada. Quanto? Ah, é um trabalho difícil. Mas quanto? (mas minha querida, o garoto tá muito manhoso, tem que ir, os dentistas agora são verdadeiras moças, deixa que eu falo com ele, um instante só professor). Pois não. Ah, dispendioso, veja, temos de acertar todos os dentes de cima e quase todos os de baixo, e os de baixo são importantíssimos, nunca se deve perder um dente de baixo, são suportes para futuras pontes, o seu aqui de baixo tá todo roído. (alô filhinho, papai quer que você vá ao dentista, não começa com isso, compro o tênis sim, drops, sei, o que shorts? ah, isso não garanto, então levo levo, certo filhinho, alô, evidente que sou eu minha querida, ele vai sim, chego cedo sim tchau tchau) Bem, onde é que estávamos, professor Amós? Respondo: nas evidências. Ah sim. Colocou os óculos novamente: o senhor parece não me levar a sério. Como assim? Notei que sorriu de um jeito um pouco, digamos, professor, um jeito condescendente, assim como se eu fosse... tolo? Impressão sua, apenas também me lembrei de uma frase. Diga, professor. Então digo a frase: “inventar um simbolismo novo e difícil no qual nada pareça evidente”, ele achava isso bom. Quem? Bertrand Russell. Ah. Continuemos, professor, não posso me demorar muito mas por favor tire férias, vinte dias, descanse. Mas o senhor não me falou claramente dos rumores. Como queira: há evidentes sinais de vaguidão. Como? De alheamento, se quiser, sim, de alheamento de sua parte durante as aulas, frases que se interrompem e que só continuam depois de quinze minutos, professor Amós, quinze minutos é demais, consta que o senhor simplesmente desliga. Desligo? Que frases eram? Não importa, por favor descanse, tome vitaminas, calmantes. Tira novamente os óculos, cobre o lábio de cima com o de baixo, suspira, sorri: vamos vamos, não se aborreça, o senhor tem sido sempre escorreito, excelente mesmo, mas cá entre nós... O reitor segura-me o braço, comprime seus dedos ao redor do meu pulso: cá entre nós, eles não estão entendendo mais nada. Quem? Seus alunos, professor, seus alunos. Estranho digo, na última aula repensamos fraudas, inícios... a raiz quadrada de um número negativo. Citei um matemático do século doze, Bramine Bascara: “O quadrado de um número positivo, tal como o de um número negativo, é positivo. Portanto a raiz quadrada de um número positivo é dupla, ao mesmo tempo positiva e negativa. Não há raiz quadrada de um número negativo, pois o número negativo não é um quadrado.” no entanto Cardan, no século dezesseis... O reitor mordeu o lábio inferior, fitou-me longamente, estendeu a mão: boa sorte, professor, férias. Atravesso o pátio. Depois corredores, gramados. Na adolescência a professora de radação pedira três contos breves. Short stories, meninos, sabem o que são short stories? Alguns babacas levantaram a mão. Muito bem, quem não souber pergunta aos outros, muito bem. Dois de meus colegas mostraram-me continhos imbecis, farfalhar de folhas passarelhos nos ramos brisas na cara etc. Aí escrevi:
Primeiro conto (vulgo short stories) __ Mãezinha, ando farto das tuas besteiras sobre moralidade e família à hora do jantar. Já te vi várias vezes chupando o pau de papai. Me deixa em paz. Assinado, Júnior.
Segundo conto (vulgo short stories) __ Vidinha, pensa bem, tu tem cinqüenta e eu vinte e cinco. Tu diz que é o espírito que conta. Eu compreendo Vidinha, mas tô me mandando. Não deprime. A gente se cruza, tá? Assinado, Laércio. Toda essa fala eu ouvi tomando guaraná no balcão de um armazém. Ele era um garotão, ela uma gordota de olho pretinho.
Terceiro conto (vulgo short stories) __ O nome dele é Sol e Adultério. O do meu marido é Elias. Meus filhos se chamam Ednilson e Joaquim. Tenho vontade que todos morram. Menos ele. (Aquele primeiro, luz e cama.) Sinto muito meu Deus, mas é assim. Assinado: Lazinha. Deste eu gosto muito. Adultério lhe parecia na adolescência uma palavra belíssima. Agora também. Depois da Aids, menos. Luz e cama foi um achado. A professora esbofeteou-lhe a cara. O pessoal do farfalhar de folhas passarelhos nos ramos brisas na cara teve como prêmio um piquenique. As notas mais altas de redação praqueles bobocas. Amós foi expulso. Perdeu o ano. Pegou pneumonia. Os coleguinhas mandaram-lhe um poema breve: Bancou o sabido, o espertinho, o vivo/ e só se fodeu / Amós, o inventivo.

Assumo: amo: Clarice, Hilda, Adélia, Alina, Vírginia, Katerine...
Mas, não dá para negar: puta-que-pariu! Hilda me tira a voz. E eu adoro. Adoro.

sábado, 29 de maio de 2010

Adélia




















Tô na fase Adélia. Uma das poetisas que mais gosto!
Se bem que sua prosa me fascina igualmente. Quero minha mãe me marcou deveras. Um livro mínimo. Fininho. E que carrega o mundo.
Recomendo.