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segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Adélia Prado - Bendito



Louvados sejas Deus meu Senhor,
porque o meu coração está cortado a lâmina,
mas sorrio no espelho ao que,
à revelia de tudo, se promete.
Porque sou desgraçado
como um homem tangido para a forca,
mas me lembro de uma noite na roça,
o luar nos legumes e um grilo,
minha sombra na parede.
Louvado sejas, porque eu quero pecar
contra o afinal sítio aprazível dos mortos,
violar as tumbas com o arranhão das unhas,
mas vejo Tua cabeça pendida
e escuto o galo cantar
três vezes em meu socorro.
Louvado sejas porque a vida é horrível,
porque mais é o tempo que eu passo recolhendo despojos,
– velho ao fim da guerra como uma cabra –
mas limpo os olhos e o muco do meu nariz,
por um canteiro de grama.
Louvados sejas porque eu quero morrer,
mas tenho medo e insisto em esperar o prometido.
Uma vez, quando eu era menino, abri a porta de noite,
a horta estava branca de luar
e acreditei sem nenhum sofrimento.
Louvado sejas!

P.S.: emociona-me. Deveras.

Adélia Prado - Para o Zé



Para o Zé



Eu te amo, homem, hoje como toda vida quis e não sabia, eu que já amava de extremoso amor o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos de bordado, onde tem o desenho cômico de um peixe — os lábios carnudos como os de uma negra.

Divago, quando o que quero é só dizer te amo.

Teço as curvas, as mistas e as quebradas, industriosa como abelha, alegrinha como florinha amarela, desejando as finuras, violoncelo, violino, menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba.

Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:

"Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros".

Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.

Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece, tira de mim o ar desnudo, me faz bonita de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega, me dá um filho, comida, enche minhas mãos.

Eu te amo, homem, exatamente como amo o que acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.

Amo até a barata, quando descubro que assim te amo, o que não queria dizer amo também, o piolho.

Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico, homem meu, particular homem universal.

Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.

Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,a luz na cabeceira, o abajur de prata; como criada ama, vou te amar, o delicioso amor: com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso, me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles eu beijo.

domingo, 22 de agosto de 2010

Sabedoriaamor implícitos

Hoje é dia da minha mãe. Acordou tagarela. Porque isso é isso, aquilo é aquilo, etc etc... E no final, angustiada com pesada frustração, disse: Eu não tenho sabedoria para conversar com vocês - Embora eu tenha mantido uma cara séria, fazendo-me de casmurro, impenetrável e sentimentalmente hermético, por dentro eu sorria.

Uma vontade de beijar aquelas bochechas penduradas e de cheirar-lhe o cangote rechonchudo e dizer ainda: sua boba, é AMOR o que está me ensinando!

Lembrei-me de uma das poesias mais lindas e profundamente sensíveis que já li aqui nesse blog da Adélia Prado, postada certa vez por Ninete. Repito-a aqui tomado por estranha paz. Estranha paz é efeito de amor?


Ensinamento


Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.


quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Toda leitura é uma cicatriz.

Toda leitura é uma cicatriz.
Desde antes de ontem que ponho o dedo naquilo que estava quase a sarar.
Reli A obescena senhora D,  de Hilda Hilst. Reli Quero minha mãe, de Adélia Prado. E estou carregando comigo um livro muito marcado (todo riscado, como costumo deizer: um livro vivido) e que me cicatrizou uns muitos sentires: Água viva, de Clarice Lispector.

Brinquei com Jadson que estava meio suicida e ele me salvou ontem me levando para a rua.
Hoje, voltei ávida por essas leituras-cicatrizes de mim.

Por que?

Tô lendo a trabalho.
Coadunando idéias. Achando como são fortes as presenças dos bichos na escritura das três moças.
As três-moças-das-águas-de-meus-sonhos.

Será que não posso mesmo enxergar a questão de uma zoopoética de Deus nesses bichos dessas moças?

Buscando. Buscando. Cortando-me. Cicatrizando-me.

domingo, 30 de maio de 2010

Objeto de Amar




















De tal ordem é e tão precioso o que devo dizer-lhes que não posso guardá-lo sem que me oprima a sensação de um roubo: cu é lindo! Fazei o que puderdes com esta dádiva. Quanto a mim dou graças pelo que agora sei e, mais que perdôo, eu amo.
(Adélia Prado)

P.S.: Quis muito uma imagem para esse post. Depois, pensei: cu é lindo! E o que é o belo é respondível? É dizível para mim? Para mim, cu basta e pronto. Descobri. Descobri que não sei falar no campo do intelecto sobre o cu! Só sei falar/sentir poeticamente o cu! Gostei do que Wesley nos trouxe sobre cu ser revolucionário. Mas, vejo poesia no cu e comentei seu post de auto-boas-vindas com poesia de grande poeta satírico de nossa terra Portugal-bahia Gregório de Matos. Agora, na fase Adélia Prado, dou-vos poesia de amor em muitas versões desde o primeiro post "Casamento".
Continuemos com Adélia sempre. Com o cu também. Porque cu é lindo e, agora que sei: mais que perdôo: eu amo!

P.S. do P.S.: na falta do indizível: a foto da moça que me fala a mim de mim como de tantos e de todos a cada um: Adélia Prado.

Opa! E, atnes que eu me esqueça: um trecho de Quero minha mãe:

Abel e eu estamos precisando de férias. Quando começa a perguntar quem tirou de não sei onde a chave de não sei o quê, quando já de manhã espero não fazer comida à noite, estamos a pique de um estúpido enguiço. Sou uma pessoa grata? Às vezes o que se nomeia gratidão é uma forma de amarra. Entendo amor ao inimigo, mas gratidão o que é? Tenho problemas neste particular. Se aviso: passo na sua casa depois do almoço, acrescento logo se Deus quiser, não sendo grata, temo que me castigue com um infortúnio. Bajulo Deus, esta é a verdade, tenho o rabo preso com Ele, o que me impede de voar. Como posso alçar-me com Ele grudado à cauda? Uma esquizofrenia teológica, eu sei, quando fica tudo confuso assim, meu descanso é recolher-me como um tatu-bola e repetir até passar a crise, Senhor, tem piedade de mim. Até em sonhos repito, Senhor, tem piedade de mim, é perfeito. Sensação de confinamento outra vez, minha pele, minha casa, paredes, muro, tudo me poda, me cerca de arame farpado. Coitada da minha mãe, devia estar nesta angústia no dia em que me atingiu: “trem ordinário” Com certeza não suportava a idéia, o fardo de ter-que-dar-conta-daquela-roupa-de-graxa-do-meu-pai, daquele caldo escuro na bacia, fedendo a sabão preto e ela querendo tempo pra ler, ainda que pela milésima vez, meu manual de escola, o ADOREMUS, a REVISTA DE SANTO-ANTONIO. Mãe, que dura e curta vida a sua. Me interditou um reloginho de pulso, mas não teve meios de me proibir ficar no barranco à tarde, vendo os operários saírem da oficina, sabia que eu saberia o motivo. Duas mulheres, nos comunicávamos. Tá alegre, mãe? A senhora não liga de ficar em casa, não? Posso ir no parque com a Dorita? Vai chamar tia Ceição pra conversar com a senhora? Nem na festa da escola, nem na parada pra ver eu carregar a bandeira ela não foi. Não dava para ir de “mantor” porque era de dia com sol quente, gastei cinqüenta anos pra entender. Teve uma lavadeira, a Tina do Moisés, que ela adorava e tratava como rainha. Sua roupa acostumou comigo, Clotilde, nem que eu queira, não consigo largar. Foi um tempo bom de escutar isto, descansei de vê-la lavando roupa com o olhar perdido em outros sítios, sentindo e querendo, com toda certeza, o que qualquer mulher sente e quer, mesmo tendo lavadeira e empregada. Tenho sonhado com a mãe tomando conta de mim, me protegendo os namoros, me dando carinho, deixando, de cara alegre, meus peitinhos nascerem e até perguntando: está sentindo alguma dor, Olímpia? É normal na sua idade. Com certeza aprendeu, nas prédicas às Senhoras do Apostolado, como as mães cristãs deviam orientar suas filhas púberes. Te explico, Olímpia, porque pode te acontecer na escola, não precisa levar susto, não é sangue de doença. Achei minha mãe bacana, uma palavra ainda nova que só os moleques falavam. Coitadas da Graça e da Joana, que nem isso ganharam dela. Morreu antes de me ensinar a lidar com as incômodas e trabalhosas toalhinhas. mãe, mãezinha, mamãezinha, mamãe, e o reino do céu é um festim, quem escondeu isto de você e de mim?

sábado, 29 de maio de 2010

Adélia




















Tô na fase Adélia. Uma das poetisas que mais gosto!
Se bem que sua prosa me fascina igualmente. Quero minha mãe me marcou deveras. Um livro mínimo. Fininho. E que carrega o mundo.
Recomendo.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Casamento



Há mulheres que dizem:

Meu marido, se quiser pescar, pesque,

mas que limpe os peixes.

Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.

É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,

de vez em quando os cotovelos se esbarram,

ele fala coisas como "este foi difícil"

"prateou no ar dando rabanadas"

e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez

atravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa,

vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:

somos noivo e noiva.

(Adélia Prado)


Poema de nega, né? De nega...feliz!