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segunda-feira, 23 de maio de 2011

Copa sim, despejo não! ou Eu não sou daqui...

"...Porém, porque peço silêncio não creiam que vou morrer. Passa comigo o contrário, sucede que vou viver. Sucede que sou e que sigo. (...) Sucede que tanto vivi, que quero viver outro tanto. Nunca me senti tão sonoro, nunca tive tantos beijos. Agora, como sempre, é cedo. Voa a luz com suas abelhas. Me deixem só com o dia. Peço licença para nascer." ... (Pablo Neruda)

Já estou em Mariana/Ouro Preto desde o final de semana. Ouro Preto é uma cidade mágica. Suas ladeiras, seus morros, as casinhas, o verde, as cores (as muitas flores, todas tão lindas, oh, Deus, das mais vagabundinhas e pequerruchas de beira de caminhos às mais raras), as ruas que me lembram canções de ninar (ouço tanto em meus ouvidos quando por lá caminho aquela sempre canção...se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes para o meu, para o meu amor passar...). Enfim, gosto das bandas de cá. E gosto dessa coisa de interior, de as pessoas serem solícitas como foi uma senhora chamada Vera que encontrei na rodoviária de Ouro Preto: me ajudou com as bagagens, conversou conversa mole comigo, me deu boas-vindas e disse onde morava para, no caso de eu me demorar por aqui, ir visitá-la. E o motorista do ônibus que, sem pressa, me deixou colocar as malas na frente, aguardou eu entrar e pagar e me sentar, para então colocar o carro em marcha...
Mas, vou viver essas cidades em seu dia-a-dia para ver o que rola, para sentir suas instabilidades, suas lutas diárias e aí sim falar mais sobre.
Digo tudo isso porque passei uma semana em BH e quando, ontem, me perguntaram o que achei de BH eu tinha respondido que gosto do clima meio cidade grande e meio interior que BH transpira. E falei a verdade. Lá é isso mesmo para mim.
Mas, quando fui dormir, sob um frio quase insuportável (já aqui em Mariana), vestida em duas calças, duas meias, com luvas, e quatro camisas (dois casacos, uma normal e outra de manga comprida) e ainda assim tremendo de frio. Ok, esquecemos eu e Maria uma janela aberta e isso foi o suficiente para eu imaginar que morreria congelada e a pensar como estariam as pessoas que não têm casa e que mesmo em albergues quase nunca estão suficientemente protegidas - esse pensamento não veio de um  sentimento de caridade cristã, mas de uma constatação política: eu passara, na semana anterior, todos os dias pela Vila Recanto UFMG, localizada na Av. Antonio Carlos. Nessa avenida, nessa vila, famílias e famílias estão sendo despejadas por conta das reformas das cidades que sediarão a Copa das Confederações em 2013 e a Copa do Mundo em 2014.
Eu cortava caminho justamente pela vila já sendo demolida. Restos de vidas ali entre montes de pedras, muita areia e transeuntes (geralmente universitários). Nas paredes, algumas pichações de reivindicação por justiça (ao menos nas indenizações).
Chamou a minha atenção repetidas vezes ter encontrado no fim da tarde uma moça jovem, sempre sentada numa cadeira quebrada (sem o encosto) com o olhar triste ou perdido, no meio de escombros. Pensei em fotografar todos os dias o ambiente que me parecia cada vez mais desolado, destruído, em ruínas. Porém, quando vi crianças (muitas) correndo, brincando, suas bonecas expostas na terra... Entendi que era invasão demais fotografar aquilo. Já era invasivo demais eu cortar caminho por ali, ver aquilo tudo e nada fazer...Presenciar as mudanças impostas e injustas das paisagens, das histórias, das memórias das pessoas...
As imagens foram fotografadas por minha cabeça que a tudo rememorou na noite de tanto frio de ontem. Pensei na moça sentada esperando sabe-se lá o que, nas crianças com suas bonecas quebradas e sujas de terra. Da terra que restava de suas casas. E me senti filha-da-puta, despolitizada, inerte... E pensando que enquanto estivermos gritando, torcendo pelo Brasil  em qualquer partida de jogo da copa em 2014, aquela menina da boneca de terra também estará talvez junto à moça da cadeira que, por ver o Brasil ganhando ou perdendo, estará, quem sabe, menos desolada que nessa semana que passou.
Esquecidos todos nós do lema Copa sim, despejo não!

sexta-feira, 18 de março de 2011

Para esquentar os motores

Nunca mais escrevi por essas plagas.  Esse o lugar de encontro de pessoas que vivem tão perto e que tanto se encontram e que desencontram também. Eu vivo me desencontrando de mim. E nesses desencontros, quase me perco e quase perco a vontade imensa que sempre tive de escrever nesse Maracujá. Esse Maracujá que se assemelhou tantas vezes ao pequeno planeta do Pequeno Príncipe para mim. Lugar onde bastava eu afastar a cadeira um tantinho para ver um pô-do-sol. E quando eu estava triste, afastava a cadeirinha (que é escrever aqui no blog) quantas vezes fossem necessárias para que a tristeza se esvaísse um tiquinho.
Nem sempre se esvaía a tristeza, mas risos eram arrancados de mim. Outras vezes a discussão azedava, enrugávamos a testa todos nós e escrevíamos. Criávamos e matávamos demônios. Azedávamos e açucarávamos esse Maracujá conforme nossas tristezas, alegrias e convicções.
O Maracujá era filosófico, literário, psicodélico, musical, gastronômico, polêmico, de declarações de amor, cinéfilo. Maracuja danado, polissêmico, inententível, composto por pessoas malucas, que se amam, que são tão iguais e tão diferentes. O Maracujá poderia se chamar também mixórdia, miscelândia, samba do criouolo doido ou simplesmente o blog de Nina, Jadson, Tiago e Wesley.

Mas, por um tempo, mesmo ainda acreditanto nisso tudo: embarguei. Vinha aqui e até tentava. Mas, não saía nada. Ou não saía como eu gostava: de coração, com vísceras, cortante, pulsante. Eu e minha cadeirinha de ver pôr-do-sol quando estou triste.

Aqui eu não ligava para as recomendações quanto às redes sociais: cuidado com o que você escreve, as pessoas estão te observando, elas fazem juízo de você. As pessoas fazem juízo umas das outras por tudo (inclusive eu): pelo que alguém ouve, pelo que alguém lê, pelo que fulano assiste, pelo que ciclano veste... Esse aqui é só mais um meio para que alguém que goste de enquadrar as pessoas por tipos, colocar tarjas de "descolado", "feliz", "triste", "inteligente", "contido", "introspectivo", "louco", etc.fazê-lo e ainda achar que o modo de escrever, as coisas escritas realmente cristalizam as pessoas. Como se não houvesse a possibilidade de mudanças, de encher o saco de tudo e mudar, de reler o que se escreveu e entender que nem sempre se é tão convicto assim das coisas, ou, ao contrário, compreender que não se muda mesmo: o que escrevi hoje é o que pensava há anos e será o que vou pensar daqui a muito tempo.
A gente muda e permanece. A gente é e não é. E a gente é tão complexo que não cabe muito em uma classificação qualquer, barata e apressada.
Eu me transformo a todo o momento. E com isso assusto as pessoas que me rodeiam e a mim mesma. E nem sempre isso é bom e nem sempre isso é ruim. Muitas vezes é mesmo é necessário.
A gente descobre, a gente inventa, a gente re-inventa. A gente muda de cidade, de religião, de corte de cabelo, de amor, de curso. Assim como a gente não deixa de amar a mesma pessoa, de lembrar as mesmas lembranças, de gostar do cabelo sempre curto ou sempre longo.
Por isso adoro quando Clarice diz "gênero não me pega mais".
Gênero nenhum me pega mais. Fato. E acho que não pega a nenhum de nós daqui do Maracujá.
E essa mesma mulher que fala sobre gênero não mais pegá-la, fala também, noutro texto, sobre termos bastante cuidado com o que mudamos em nós, especialmente sobre defeitos (é de se pasmar com isso!), ela nos diz que há defeitos que seguram toda uma coluna...
E complicação, paradoxos, comunicação tronxa nunca deixou de ser o nosso forte aqui, portanto...me sinto agora bem-vinda a recomeçar a escrever aqui. De coração, tronxamente, paradoxalmente, com defeitos seguradores de colunas em mim e com mudanças que nem eu mesma posso imaginar. Yudo junto num só Maracujá.

E o que me moveu a voltar a escrever aqui foi o fato de Jadson estar indo embora (mudando, portanto) para Brasília para fazer o mestrado dele.
O Maracujá continuará sendo nosso ponto de encontro nos encontros e desencontros de nossas vidas. Nas mudanças e nas mesmices. Até que cessemos de azedumes e doçuras e cambiemos para outras formas de nos (des)comunicarmos.

Assim: que venham doces e azedos, que venham demônios e anjos. Que voltemos a nos comunicar assim: trágica e comincamente como tem sido desde que estamos juntos nesse Maracujá.

E, por falar em mudanças e mesmices, recordo aqui o dia em que caminhava eu pelo centro da cidade e uma moça me chamou com dúvida:
- Nina?
Eu respondi com certeza de nunca tê-la visto:
-Sim, sou eu.
E ela disse em forma de pergunta de novo:
-Você é a filha de Dona Deise?
-Sim, sou.
-Eu fui sua babá! Você tinha uns dois ou três anos. Você continua com a mesma carinha: só cresceu!
E conversamos um bom trecho amigavelmente, ela recordando coisas que minha mãe me falava e eu não lembrava... Mas, bastou a senha "você é filha de Dona Deise" para que eu me achasse íntima daquela que cuidou de minha numa infância longíqua e esquecida.
Nos abraçamos e eu me emocionei ao deixá-la na rua Laranjeiras com uma parte de minha vida.

Dia desses, estou eu estudando na Bicen quando me chega um rapaz e me diz:
- Sabia que estudamos juntos?
Eu respondi:
- Não.
E ele disse:
- Fizemos datilografia informatizada no Senac em Propriá. Eu tinha uns dez anos, você deveria term uns quinze. Eu era aquele guri que dava choque em todo mundo...
Eu não recordava dele, nem de seus choques nem das coisas outras que ele me falou. Recordava que fiz esse curso e de apenas uma pessoa que ele falou que também frequentava as aulas.
Rimos de alguém em alguma época ter feito um curso desses e ri dele com dez anos de idade fazer o tal curso.

A memória me prega peças. Nem sempre está tão viva em mim. Mas, o que me assusta é que se me olho no espelho, me acho tão diferente...e as pessoas teimam em me reconhecer, em me falar que continuo a mesma...E um grande amigo meu, paradoxalmente, me olha e me diz sempre: "Nina, você está tão diferente!". Peço que ele me explique como, por que, em que...e ele só faz cara de agoniado e me deixa com minhas mudanças e minhas mesmices a não entender muito...
E um outro querido amigo me disse: "Destes seis anos que te conheço, acho que essa é a terceira Nina que vejo".

Eu mudo. Ainda que permaneça a mesma.
E assim o é com todo mundo, por incrível que pareça a cada um.
Dessa forma: para que taxar, classificar?

Um pequeno Adeus....


Nasci em um povoado chamado Tapera localizado na cidade de Itaporanga d`Ajuda. Meu parto, relata minha mãe, foi rápido e quase indolor, nasci com 8 meses. Pouco tempo depois estava viajando para o Estado da Bahia, contam minhas tias que passei uns tempos lá numa cidade chamada Alagoinhas, não sei precisar quanto tempo. Mas, quando voltei para Sergipe voltei sem minha mãe que foi "tentar a vida" por lá.

Aos nove anos minha mãe volta à Aracaju e decide por me tutelar novamente, mudança mais uma vez. bairro Cidade Nova e logo depois Conjunto Residencial Marcos Freire I no qual morei dos nove aos 25 anos, por lá vivi toda a minha pré e adolescência, mudando uma vez apenas de rua.

De mudança novamente até Aracaju passo esses últimos 5 anos em minha casinha, lugar que redeu muitas e muitas alegrias para mim e para muitos de meus queridos amigos as pequenas reuniões e festinhas, as sessões marcantes de filmes fantásticos, os almoços macarronescos, os aniversários e tantas outras coisitas . Viajo nesta segunda-feira(21/03/2011) acho que passo apenas um tempo fora cuidando de um desejo intelectual.

No mais um grande Beijo em todos vocês.

AMO MUITO TODOS E VOS ESPERO EM GOIÂNIA/BRASÍLIA.

JADÃO

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Amarelo-ordem

Pendurei Mnemosyne nas orelhas. Reli uma parte bonita de minha vida. Revi trechos de autores que falam sobre mim e sobre essa parte bonita de minha vida. Juntei tudo num envelope-saco amarelo. Transcrevi os trechos nesse envelope. E pensei: amarelo é a cor do tempo; dos papéis antigos; das fotografias do passado; dos sorrisos-sem-graça dos esquecimentos.
Amarela é a cor da ordem lispectoriana que reli em Água viva: "Por enquanto há diálogo contigo. Depois será o monólogo. Depois o silêncio. Sei que haverá uma ordem".
É a ordem - amarela - que mais acontece. Especialmente com as partes bonitas de nossas histórias.
Eu também sei que haverá uma ordem, Clarice. Pois só permanece verde-vivo aquilo que a gente cultiva, aquilo que a gente mexe e remexe, rega, agooa, molha, sulca, toca, vive todos os dias.
Amarela também é a cor da folha sem água, sem vida, sem sumo, que logo cairá, apartada da árvore. Morta. Para viver um ciclo, uma ordem.
Amarela é a cor do fim.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Adélia Prado - Bendito



Louvados sejas Deus meu Senhor,
porque o meu coração está cortado a lâmina,
mas sorrio no espelho ao que,
à revelia de tudo, se promete.
Porque sou desgraçado
como um homem tangido para a forca,
mas me lembro de uma noite na roça,
o luar nos legumes e um grilo,
minha sombra na parede.
Louvado sejas, porque eu quero pecar
contra o afinal sítio aprazível dos mortos,
violar as tumbas com o arranhão das unhas,
mas vejo Tua cabeça pendida
e escuto o galo cantar
três vezes em meu socorro.
Louvado sejas porque a vida é horrível,
porque mais é o tempo que eu passo recolhendo despojos,
– velho ao fim da guerra como uma cabra –
mas limpo os olhos e o muco do meu nariz,
por um canteiro de grama.
Louvados sejas porque eu quero morrer,
mas tenho medo e insisto em esperar o prometido.
Uma vez, quando eu era menino, abri a porta de noite,
a horta estava branca de luar
e acreditei sem nenhum sofrimento.
Louvado sejas!

P.S.: emociona-me. Deveras.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O cuscuz do dia-a-dia

Em matéria de mei doido
Eu me sinto mais ou menos
Dei com as palavras no palco
Feito um Biu de paletó
Severino pra platéia.
Usei palavras plebeias
Que nunca puderam entrar
Em discurso ou poesia.
Palavras soltas, baldias
Daquelas só disponíveis
Nas últimas nuvens do céu.
Conversei com flamboaiãs
No puro flamboaianês.
Despejei cachos de lágrimas
Pros versos de Assaré.
Beijos de rapadura
Pro vozeirão de Luiz
Sofri adivinhaduras
No sertão do pensamento.
Senti, naquele momento
Que isso era um fazimento
Democrático feito jeans.
Sem rodeio e sem pantins
Sem nhenhenhém, sem besteira
Fiz de velhas cuscuzeiras
Um gordo baú de flandre
Forjado em Campina Grande
Com três tons de serventia:
Deixar minha poesia
Meu verso e meu converseiro
Com textura cor e cheiro
Do cuscuz do dia-a-dia.
(Jessier Quirino)

P.S.: Lembro-me de quando estive em Brasília, uma garota, de repente falou em cuscuz. Era tarde da noite. E ficamos querendo comer cuscuz. Cheguei a sentir o cheiro do cuscuz. A boca salivando. A memória também é olfativa.

Jessier Quirino (ou das coisas bonitas que acontecem em nossas vidas)

Conheci Jessier Quirino através de Rogério. No incício de nosso namoro. Ele me apresentou muitas letras e eu adorei todas. Assim que ouvi essa, lembrei logo de minha mãe e tratei de mostrar-lhe. Ela, entre risonha e emocionada, adorou também. Logo, passamos a achar coisas dele e a ouvir juntas. Já vi duas vezes o show dele e sempre ri muito e me emocionei também. A primeira vez que o vi, comprei um cd e pedi que o autografasse e dedicasse a Rogério (era uma tietagem, mas era também uma meira de agradecer a Rogério ele me te mostrado Jesiier...). Aqui vai a letra de "Vou-me embora para o passado":

Vou-me embora pro passado
Lá sou amigo do rei
Lá tem coisas "daqui, ó!"
Roy Rogers, Buc Jones
Rock Lane, Dóris Day
Vou-me embora pro passado.
Vou-me embora pro passado
Porque lá, é outro astral
Lá tem carros Vemaguet
Jeep Willes, Maverick
Tem Gordine, tem Buick
Tem Candango e tem Rural.
Lá dançarei Twist
Hully-Gully, Iê-iê-iê
Lá é uma brasa mora!
Só você vendo pra crê
Assistirei Rim Tim Tim
Ou mesmo Jinne é um Gênio
Vestirei calças de Nycron
Faroeste ou Durabem
Tecidos sanforizados
Tergal, Percal e Banlon
Verei lances de anágua
Combinação, califon
Escutarei Al Di Lá
Dominiqui Niqui Niqui
Me fartarei de Grapette
Na farra dos piqueniques
Vou-me embora pro passado.
No passado tem Jerônimo
Aquele Herói do Sertão
Tem Coronel Ludugero
Com Otrope em discussão
Tem passeio de Lambreta
De Vespa, de Berlineta
Marinete e Lotação.
Quando toca Pata Pata
Cantam a versão musical
"Tá Com a Pulga na Cueca"
E dançam a música sapeca
Ô Papa Hum Mau Mau
Tem a turma prafrentex
Cantando Banho de Lua
Tem bundeira e piniqueira
Dando sopa pela rua
Vou-me embora pro passado.
Vou-me embora pro passado
Que o passado é bom demais!
Lá tem meninas "quebrando"
Ao cruzar com um rapaz
Elas cheiram a Pó de Arroz
Da Cachemere Bouquet
Coty ou Royal Briar
Colocam Rouge e Laquê
English Lavanda Atkinsons
Ou Helena Rubinstein
Saem de saia plissada
Ou de vestido Tubinho
Com jeitinho encabulado
Flertando bem de fininho.
E lá no cinema Rex
Se vê broto a namorar
De mão dada com o guri
Com vestido de organdi
Com gola de tafetá.
Os homens lá do passado
Só andam tudo tinindo
De linho Diagonal
Camisas Lunfor, a tal
Sapato Clark de cromo
Ou Passo-Doble esportivo
Ou Fox do bico fino
De camisas Volta ao Mundo
Caneta Shafers no bolso
Ou Parker 51
Só cheirando a Áqua Velva
A sabonete Gessy
Ou Lifebouy, Eucalol
E junto com o espelhinho
Pente Pantera ou Flamengo
E uma trunfinha no quengo
Cintilante como o sol.
Vou-me embora pro passado
Lá tem tudo que há de bom!
Os mais velhos inda usam
Sapatos branco e marrom
E chapéu de aba larga
Ramenzone ou Cury Luxo
Ouvindo Besame Mucho
Solfejando a meio tom.
No passado é outra história!
Outra civilização...
Tem Alvarenga e Ranchinho
Tem Jararaca e Ratinho
Aprontando a gozação
Tem assustado à Vermuth
Ao som de Valdir Calmon
Tem Long-Play da Mocambo
Mas Rosenblit é o bom
Tem Albertinho Limonta
Tem também Mamãe Dolores
Marcelino Pão e Vinho
Tem Bat Masterson, tem Lesse
Túnel do Tempo, tem Zorro
Não se vê tantos horrores.
Lá no passado tem corso
Lança perfume Rodouro
Geladeira Kelvinator
Tem rádio com olho mágico
ABC a voz de ouro
Se ouve Carlos Galhardo
Em Audições Musicais
Piano ao cair da tarde
Cancioneiro de Sucesso
Tem também Repórter Esso
Com notícias atuais.
Tem petisqueiro e bufê
Junto à mesa de jantar
Tem bisqüit e bibelô
Tem louça de toda cor
Bule de ágata, alguidar
Se brinca de cabra cega
De drama, de garrafão
Camoniboi, balinheira
De rolimã na ladeira
De rasteira e de pinhão.
Lá, também tem radiola
De madeira e baquelita
Lá se faz caligrafia
Pra modelar a escrita
Se estuda a tabuada
De Teobaldo Miranda
Ou na Cartilha do Povo
Lendo Vovô Viu o Ovo
E a palmatória é quem manda.
Tem na revista O Cruzeiro
A beleza feminina
Tem misse botando banca
Com seu maiô de elanca
O famoso Catalina
Tem cigarros Yolanda
Continental e Astória
Tem o Conga Sete Vidas
Tem brilhantina Glostora
Escovas Tek, Frisante
Relógio Eterna Matic
Com 24 rubis
Pontual a toda hora.
Se ouve página sonora
Na voz de Ângela Maria
"— Será que sou feia?
— Não é não senhor!
— Então eu sou linda?
— Você é um amor!..."
Quando não querem a paquera
Mulheres falam: "Passando,
Que é pra não enganchar!"
"Achou ruim dê um jeitim!"
"Pise na flor e amasse!"
E AI e POFE! e quizila
Mas o homem não cochila
Passa o pano com o olhar
Se ela toma Postafen
Que é pra bunda aumentar
Ele empina o polegar
Faz sinal de "tudo X"
E sai dizendo "Ô Maré!
Todo boy, mancando o pé
Insistindo em conquistar.
No passado tem remédio
Pra quando se precisar
Lá tem Doutor de família
Que tem prazer de curar
Lá tem Água Rubinat
Mel Poejo e Asmapan
Bromil e Capivarol
Arnica, Phimatosan
Regulador Xavier
Tem Saúde da Mulher
Tem Aguardente Alemã
Tem também Capiloton
Pentid e Terebentina
Xarope de Limão Brabo
Pílulas de Vida do Dr. Ross
Tem também aqui pra nós
Uma tal Robusterina
A saúde feminina.
Vou-me embora pro passado
Pra não viver sufocado
Pra não morrer poluído
Pra não morar enjaulado
Lá não se vê violência
Nem droga nem tanto mau
Não se vê tanto barulho
Nem asfalto nem entulho
No passado é outro astral
Se eu tiver qualquer saudade
Escreverei pro presente
E quando eu estiver cansado
Da jornada, do batente
Terei uma cama Patente
Daquelas do selo azul
Num quarto calmo e seguro
Onde ali descansarei
Lá sou amigo do rei
Lá, tem muito mais futuro
Vou-me embora pro passado

Rosinha é boa

Rapaz, acabo de me lembrar de um causo que minha mãe contava quando eu era pequena. Na verdade, era uma piada, mas ela floreava e virava um causo. Eu não sei florear muito. Talvez pessoalmente saiba mais e se tomar três cervejas, saiba mais ainda. Mas, a história é:
"Havia num interior de um lugar, uma moça, Rosinha, muito bonita. Todos a admiravam e ela namorou um caminhoneiro. Ele, então, colocou em seu caminhão a seguinte frase: 'Rosinha é boa'. Brigaram. O amor acabou. Eles, então, separaram-se. Rosinha, sempre muito bem cotata, arrumou logo um novo namorado, e este era candidato a prefeito e ganhou a eleição. Logo, virou o "dono" da cidade, uma vez que vivia-se sob  regime de coronelismo (como ainda hoje se vive disfarçadamente). Então, a primeira atitude do senhor prefeito foi a de "mandar" o caminhoneiro mudar a frase de seu caminhão. Pois, Rosinha agora era a primeira dama da cidade e tal frase não convinha...Logo, o caminhoneiro e ex-apaixonado de Rosinha, por ter sido o pedido feito de maneira nada pacífica, retirou a tal frase. Dias depois, reapareceu com outra, em seu caminhão: CONTINUO COM A MESMA OPINIÃO...".

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Um olhar (meta)físico de um outro lugar



Viajar é sempre uma experiência que foge ao ordinário, mesmo que se faça sempre.

Não por acaso o alhar de um estrangeiro se perde no abismo de possibilidades ou de reflexões que põe o indivíduo diante dele mesmo, de uma (meta) realidade que lhe escapa na hodierna relação com seu espaço, com suas memórias e referências, parece que diante deste novo espaço que se abre em terra estrangeira, o infinito se abre se opondo a finitude de tais relações.

Ser um corpo estranho em meio a um emaranhado de concreto, de corpos e ambientes, é por sua perspectiva em sucessões de eventos que te joga a um horizonte expansivo, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, sentimos uma saudade incomensurável de nossa origem, de nossa fixidez, de nossa terra, de minha terra. Talvez, essa reflexão caiba apenas as minhas próprias reflexões, e se a tentativa de partilha-lha não alcance um caráter universal só reforça ainda mais que o indivíduo é uma construção de e para si.

Alguns eventos nesta última viagem mereceram um tempo específico para uma melhor digestão. Posso destacar a eleição presidencial no âmbito privado, vejamos:

Domingo dia 31 de outubro as 19 horas, Belo Horizonte, estado de Minas Gerais, segundo turno das eleições presidências, uma considerável porcentagem das urnas apuradas e Dilma Rousseff caminhava para ser a primeira mulher eleita presidente no país, a noite anunciava a vitória do partido dos trabalhadores, outrora representante de uma causa utópica-socialista, agora um partido claramente progressista de tendências neoliberais, ainda que negue tais posturas.

O que foi para mim INcrível, quase que metafísico, foi presenciar o entusiasmo de alguns jovens que se reunirão para comer pizza com coca-cola e acompanhar a apuração, a utopia socialista que foi por água abaixo a quase 10 anos atrás, parecia não representar nada para aqueles jovens esquerdistas, que enfervecendo-se da vitória petista gritavam felizes “ É DILMAAAA!!!!”, e ainda torciam para a vitória de todos os candidatos a governadores que eram do PT ou apoiado por este, independente do contexto local. Caminhavam após a degustação alimentícia, para um bairro nobre da cidade, bairro que segundo eles a política do PSDB se coadunava com as posturas de seus moradores, para agitarem a bandeira petista e mostrar que eles perderam.

A pergunta que fica é: o mito LULA vai além das massas e enturva também o olhar dos ditos esclarecidos ou é falta total de uma criticidade?

JT

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Memória, tempo, sistema, constatação?

Ainda estou elaborando essa minha ida à cidade da infância.
Vi algumas pessoas queridas. Soube notícias de tantas outras.
Constatei uma coisa triste: muitas de minhas amigas, colegas de escola, casaram-se e foram "maltratadas" (palavra mais comum de se ouvir nas conversas) pelos maridos. Quase todas tiveram filhos. Umas separam-se, outras ainda não...
O fato é que percebi a permanência de um sistema acabrunhado, preconceituoso, opressor, contrário às diferenças, contrário aos direitos da mulher.

Vou elaborar muito tudo o que vivi em dois dias.

"Tempo amigo, seja legal, conto contigo, pela madrugada..."

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Notícias de uma paz particular?

Estou numa lan hause...em Propriá...bem perto do Velho Chico. Já o olhei de soslaio, enquanto vinha aqui para falar urgente com Rogério. Vim resolver problemas. Mas, claro que olhei bem a gurizada saindo da Fundação Bradesco e me vi entre eles. Pequeninha, loirinha, presepeira, tímida...criança ainda.

Depois qu resolver tudo: vou dar uma olhada gingantesca no rio de minha infância. Vou passar também em frente à casa da minha meninice e vou dar um abraço na minha melhor amiga de infância: acabamos de marcar isso.

domingo, 24 de outubro de 2010

PAIXONITE AO CELULAR – MADRUGADA:

• Parte 1: “E, numa destas casualidades que me lancinam, dispus-me a ver o filme francês mais elogiado pelos críticos no ano passado. Desgostei da neurastenia pequeno-burguesa de amor envelhecido, mas o título... ERVAS DANINHAS [2009], que nem eu, o verde que maltrata, o sono intranqüilo, alguém sendo eletrocutado nalgum lugar, o vigor que se esvai, a desculpa mal-pronunciada, o não-dever ir, o ‘tu ausente’ (frase do filme), o socorro e Deus. Pesa muito enlouquecer? Me falta”.

• Parte 2: “Ou te sobra, melhor dizendo. ‘Não levará a nada’. Fotos desbotam... Dorme bem, dorme bem... Silêncio na rua, dentro, fora, do teu lado, DEVE SER TARDE! Tentei?”

• Parte 3: “Frase final do filme: ‘mamãe, quando eu for um gato, poderei comer comida de gato?’ E a racionalidade quase se foi depois do avançado da hora: a espera vã. Boa noite, boa madrugada, ótima vida para ti! Eu me lembro: Alain Resnais faz isso comigo. Erva daninha: e assim sou”...

Preciso dizer que amo (e adoeço)?

Wesley PC>

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Trágico

Não sei medir o que foi mais trágico: eu não ter dormido quase nada durante toda a noite e curtindo forte dor de cabeça ou eu ter chorado num ponto de ônibus da Coroa do Meio ouvindo, vinte para as seis da matina, num rádio de um senhor ao meu lado, Jayne cantando "Dia de formatura" ou eu ter subido no Circular Cidade (não sei que número), ainda chorando, fazer o percurso até o terminal Atalaia, ainda chorando e pensando: "Minha vida não faz o menor sentido".

sábado, 25 de setembro de 2010

Infância e a memória perdida


A memória é uma coisa realmente fascinante, outro dia caminhando pelas ruas do bairro em que moro, lembrei de quando criança brincava nas ruas de muitas coisas e era muito divertido, a minha geração curtia pimbarra, queimado, manja, esconde-esconde, cipozinho quente, garrafão, elástico, pedra-papel-tesoura, eram tantas....
Fiquei me perguntando o que faz que essas coisas percam o sentido quando crescemos, ao menos, o que acontece para que paremos de brincar? De fato passamos a nos divertir de outros modos, esse universo infantil se distância com a chegada das responsabilidades, do modo como vivemos ou como nos submetemos ao modo de produção capitalista.
Ambicionamos tantas coisas, ou mesmo, introjetamos um discurso que diz que precisamos ser algo na vida, ou seja, manter a lógica social em ordem. É uma discussão talvez aporética, o que nos desejamos e aquilo que pensamos que estamos desejando. Mas será que em todo caso somos vítimas da vontade?
Esses dias vi um filme interessante chamado “Moon” no Brasil “Lunar, uma mistura de várias ficções científicas, mas bem legal, que o foco era a memória, a memória implantada em clones de um homem que deveria ter sido astronauta, que teria uma mulher e filha, tais clones serviam em uma base de produção de energia na lua e eram despertados no momento em que convinha a empresa por um computador tipo o HAL de “2001- uma odisseia no espaço”, muitas questões podem e devem ser levantadas a partir das implicações éticas deste tipo de prática, que não duvidem que já aconteça por ai a fora....
Estou numa fase estranha ultimamente, muitas interrogações estão vindo a tona, será que vale a pena viver sendo um clone com memórias implantadas? E Como viver daí em diante sabendo que não existe memória verdadeira?
Olhar o passado é um movimento que as vezes pode ser cruel, se é que temos memórias verdadeiras ou se são as romantizadas as que dão sentido a vida...... e o esquecimento como podemos falar dos hiatos que se formam na nossa mente com o passar do tempo, na verdade o que podemos é criar coisas para preencher os vazios....

Jadson Teles

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Muito íntimo para publicar?

Por muito tempo eu escrevi diários íntimos. Quase todos eu destruí. Os de minha adolescência e, mais antigos ainda, os da pré-adolescência. Por vezes eu me cobrava: "Oh, porque é que eu fiz isso?" e reclamava: "Seria massa saber de mim naquela época, como eu pensava/sentia as coisas". Mas, acabava me confortanto com a idéia que muita gente faz de mim e que acabei fazendo também: a de que tenho uma memória de elefante. Lembro-me, realmente, de muitos detalhes, de muitas coisas/acontecimentos. E sou mesmo capaz de lembrar a roupa que não-sei-quem estava usando na ocasião em que segurando um copo verde de água falou "não-sei-o-que, não-sei-o-que, sei-que-lá".
Isso acontece em muitas e muitas oportunidades. Recordo acontecimentos, sensações, épocas, etc.
Tanto que lembro da sensação ruim, de abandono, que sofri algumas vezes quando minha mãe me deixava na escola quando eu era bastante pequena. Era uma dor meio de mágoa, pois eu imaginava que ela estava me deixando para sempre.
Essa não é uma memória por tabela - daquelas que a gente não lembra, mas de tanto nos falarem, fica em nossa cabeça como um acontecimento. Não, nem ela mesma sabia disso que eu sentida. Eu só falava da alegria que era quando ela ia me buscar. Da tristeza, eu não comentava. Guardava num canto qualquer para  esquecê-la. Mas, isso não aconteceu. Até hoje sinto o coração apertado quando vejo guris sendo deixados em portas de escolas. Imagino se algum deles está naquela hora achando que nunca mais verá a pessoa que mais ama no mundo.
Ok. Também essa recordação pode ser um indício de que eu seria uma pessoa dramática. Mas, aí pode já ser uma superinterpretação. Prefiro continuar acreditando na tal memória afetiva.

Voltemos ao motivo que me levou a falar em diários íntimos. Ontem, pela madrugada, mexendo em papéis, encontrei um diário meu. Mais recente, de 2007.
Li algumas partes. Mas, antes pensei: olha só, estou prestes a viver um encontro comigo mesma.
Tamanho o susto: não era eu. As situações as mesmas, em sua grande parte, mas a minha percepção, o meu jeito de ver, de sentir...tudo mudado.
E as surpresas eram algumas. Pessoas das quais eu não me separava, hoje estão tão distantes que nem ocorre de eu pensar muito. Inda bem que não houve ruptura alguma de maneira ruim, porque fulana me tratou mal ou eu tratei fulana mal ou coisas que o valham. Afastamento por conta das mudanças mesmo. Essa que tanto me assustou.
Coisas que eu, a pessoa que tem memória de elefante, não me lembrava.
E a percepção de que o ano de 2007 foi um dos mais difíceis de minha vida. A morte de minha mãe foi em 2006. Mas, as complicações se deram em 2007. Talvez meu organismo tenha reagido com tamanha força com o passar do tempo. Quando, para todos, o tempo (que costumam falar que é remédio) havia solucionado as coisas, para mim, a idéia-sensação era de que tudo só havia piorado.
Sobrevivi a 2007. Foi essa a graça da noite de ontem. A certeza de que aquele ano está longe de mim uma distância de 3 anos e de incontáveis mudanças.
Não sei se é caso de dizer que as coisas melhoraram ou pioraram (ainda que eu mesma tenha usado palavras assim nesse texto, algumas linhas antes). Mudaram.
Percebi que tal processo de mudança teve o dedo meu, da vida e de todas as pessoas por perto de mim.
Bom, enfim, percebi que mesmo com o diário em mãos, ainda assim, aquele ano será digerido por alguns muitos anos a fio...não será ainda para já, em alguns aspectos.
Uma dúvida me restou e eu falei, sozinha, para mim: "Não seria melhor tê-lo destruído?".
Tenho pensado que sim. Não porque as coisas passaram, não porque eu não sou mais a mesma, não porque foi um ano ruim para caralho. Pelo fato de que realmente, pensando-se no que venha a ser a memória para a construção de identidades, muitas vezes o esquecimento é por demais necessário para prossigamos com a vida normal.
Aqui, penso numa memória política. Os presos e torturados em regimes ditatoriais, etc.
Algumas marcas devem nunca serem esquecidas para não haver mais repetição. Outras, devem ser esquecidas para que se continue a viver. Pois, a memória também é passado. E revisitar algumas coisas é o mesmo que concordar com o presente como um passado que não quer passar...

sábado, 28 de agosto de 2010

Memória e subjetividade amorosa


"Uma memória coletiva se desenvolve a partir de laços de convivência familiares, escolares, profissionais. Ela entretém a memória de seus membros, que acrescenta, unifica, diferencia, corrige e passa a limpo. Vivendo no interior de um grupo, sofre as vicissitudes da evolução de seus membros e depende de sua interação. Quando sentimos necessidade de guardar os traços de um amigo desaparecido, recolhemos seus vestígios a partir do que guardamos dele e dos depoimentos dos que o conheceram. O grupo de colegas mal pode constituir um apoio para sua lembrança, pois se dispersou e cada um se integrou num meio diverso daquele que conheceu. Como salvar sua lembrança senão escrevendo sobre ele, fixando assim seus traços cada vez mais fugidios?" (Ecléa Bosi, in: Memória e Sociedade - Lembranças de velhos)

Impossível para mim reler esse livro da Ecléa Bosi e não fazer, a cada releitura, uma releitura de mim mesma com a minha mãe, com a minha infância, com o meu passado, com os espaços os quais já percorri e, portanto, com o meu presente.
Não temo dizer que meu principal objetivo ao trabalhar com a temática da memória no mestrado seja o de nunca esquecer. Seja o de estar sempre perto de minha mãe.
É como se eu tivesse um dever de memória, precisasse criar um lugar de memória, para falar nos termos de Pierre Nora.
E não há dúvida de que identidade e memória tem muito a ver um com o outro. E ao estudar memória, acabo constituindo uma noção grande de identidade. Acabo pensando coisas sobre mim e sobre ela (a minha mãe) e sobre o lugar que nos abrigou por quase toda a minha vida que foi a cidade de Propriá e sobre Aracaju essa cidade sempre presente também em nossas vidas. E assim, talvez me confunda mais e melhor sobre o que seja eu. Sobre o que foi ela. Sobre o que é que fui eu. Sobre quem é ela.
Outro dia estava eu a ler um livro escrito por Todorov chamado O homem desenraizado. Ele começa esse seu livro falando sobre a experiência que viveu ao viajar para ministrar uma palestra na Bulgária. A Bulgária é o seu país de origem. E ele retornou, depois de um exílio "circunstancial", como o próprio diz ter sido o seu, uma vez que não foi convidado a sair de seu país por motivos nem políticos (diretamente) nem econômicos ou de qualquer outra ordem. Foi uma opção. E ele não optara ingenuamente por deixar deixar uma terra "marginal"(em se pensando que Paris, lugar para onde foi, era, à época o "império" ou lugar onde outros lugares estariam em sua órbita). Ele foi estudar e lá ficou. Mas, é verdade que nunca concordou com a política governamental desenvolvida em seu país.
Depois de 18 anos fora de seu lugar de origem, distante lingüística e emocionalmente de seu lugar de origem, ele se viu em Sófia. Em sua casa. Reencontrando a mãe, amigos e até seus sapatos de jardinagem que sabia que eram seus pois que ainda guardavam os mesmos vícios de seus pés, as mesmas marcas.
Mas, antes, anos antes, Todorov nos conta que sonhava um sonho recorrente. Sonhava que visitava seu lugar de origem e, quando estava prestes a voltar à França, ia para estação de trem e de lá não conseguia sair. As situações nos sonhos eram muitas e variadas. Vezes havia esquecido a passagem em casa e se voltasse perderia o trem, outras ele entrava na estação, mas ao atravessá-la nada via que não fosse mato, outras ainda, estava de carona com um amigo que pegava um atalho e se perdia e chegavam atrasados à estação.
Ele estava impossibilitado de voltar à sua terra eleita, a França. E isso o apavorava.
Era um sonho. E quando se viu prestes a viajar de verdade para esse mesmo lugar dos sonhos e que era o de sua origem, ele tratou de prevenir possíveis não-voltas. Casou-se com a companheira de anos, escreveu a amigos que mantinham contato com a imprensa todos os dados de onde estaria e o que iria fazer lá, enfim, precauções que nos parecem absurdas ao lermos seu texto, mas que não são tão absurdas assim se lembrarmos que a Sófia vivia um regime autoritário comunista e que não seria tão absurdo acontecer-lhe algo.
Uma vez em Sófia, Todorov vive um processo estranho e dominante de reflexão quanto à sua identidade. Ele sente como se fosse um personagem duplo. Oras ele é o personagem búlgaro, outras ele é o personagem francês.Tudo o que se passava em seu interior, antes, com tranqüilidade, sem violência, todo o processo de desculturação, aculturação e de transculturação já vivenciados e já "superados", tudo veio à tona quando este se viu na Bulgária.
Foi preciso temer perder uma identidade escolhida, foi vivendo o embate junto aos que ficaram, foi se perguntando o que seria ele se ele não tivesse saído, foi pensando em tantas coisas que ele chegou a compreender que as identidades culturais não são apenas nacionais, existem outras ligadas aos grupos pela idade, pelo sexo, pela profissão, pelo meio social. Foi vivendo certas coisas na carne, como se de repente tivesse que não agir de maneira simples, mas sim ligando e desligando tomadas de si mesmo: a tomada búlgara, a tomada francesa, a tomada de ser filho, a tomada de ser amigo, a tomada de ser um intelectual que ia proferir uma palestra num país onde era estrangeiro e pertencente ao mesmo tempo, a tomada de ser isso ou aquilo. Entendeu, então, que em nossos dias todos já vivemos, ainda que em níveis diferentes, este reencontro de culturas no interior de nós mesmos.
E ao ler Todorov testemunhando um processo de identidade e de memória, eu lembrei de um conto de Luis Borges, que está em O livro de areia, chamado O outro. Nesse conto, Borges velho encontra-se com Borges jovem. Não são o mesmo. É seu duplo. Apesar de ser o mesmo Borges em tempos diversos, são pessoas diferentes. Vale a pena ler o conto. Por que agora estou já cansada de tanto fluxo de pensamento. De tanto sentir entrecortado. Já falei demais. E tudo isso para dizer que morro de saudades e que encontrei um jeito sim de ficar mais perto de minha mãe. E está aqui na memória, em cada coisa que escrevo, que relembro, que monto de novo. Mergulho. Superfície. Tudo ao mesmo tempo.
E tudo isso me ajuda a deixar de ser preconceituosa. A tentar compreender que se eu sou construção, também ela foi para ela mesma e para mim e continua a ser. Assim como qualquer outra pessoa. Assim como acontece com todo mundo.
Mas, ser construção não significa deixar de ser verdade.
E se um mesmo homem não mergulha num mesmo rio porque ambos, homem e rio, já não são o mesmo, como querer de mim ou dela ou de qualquer pessoa que seja algo estático?
E eu não falo aqui de hipermodernidade, de pós-modernidade, de tudo líquido.
Falo de possíveis e prováveis preconceitos mesmo. De como a gente encara uma mãe, uma mulher.
Minha mãe era uma mulher inquieta. Buscava coisas (e aqui coisas não é só o que de material possa existir, mas sim também idéias, sentires, etc.). Era inconformada com muito do que viveu, do que vivia. E isso é o que foi mais marcante dela para mim.
Isso estava em sua voz, grossa, rouca, de gritar para a vida. Seus grandes olhos verdes. Sua postura ereta. Ela era alta. E dizia ter só tamanho. Pois que se via como uma manteiga derretida. Isso estava em suas memórias, no que ela lembrava dos anos 60, de como rememorava o golpe de 64, ela com 20 anos de idade. Como ela reconstruía as ruas de Prporiá, a festa de Bom Jesus, o Cine Veneza, alguns tantos acontecimentos políticos. Como ela me explicava os nomes das ruas ou de como as ruas eram conhecidas.
Eu a amava e a temia (não só porque ela era a minha mãe, mas porque ela sabia assustar quando ficava brava). Respeitava. E falávamos de tudo. E éramos verdadeiramente amigas. Mesmo que vez ou outra ela dissesse: "Ei, mocinha, a mãe aqui sou eu, viu?". Ela era muito conversadeira (era assim mesmo que falávamos rindo quando varávamos a noite conversando: hoje estou conversadeira, estou com o conversador aberto).
Ela era intensa e como pessoa intensa não vivia as coisas por oportunismo ou de maneira reducionista.
Amava. E por amor sofreu.
Fumava. Parou um mês antes da morte. Parou porque estava doente e não podia mais. Mas, o cigarro era o seu companheiro. Daquelas tantas horas de insônia e que eu estava dormindo. E daqueles momentos que todos nós temos: aqueles que a gente não deixa ninguém penetrar, por mais que a gente ame muito, sabe?
Ela era assim e muito mais. Porque ela era gente. Gente  muito gente. E, como disse Clarice Lispector, para além de gente ela era uma Pessoa. Assim com maiúscula.
Ela era uma Pessoa. Tinha suas máscaras, seus sonhos, seus silêncios, suas brigas, suas opiniões, sua voz. Suas escolhas, suas dúvidas. Suas contradições. Era, enfim, uma Pessoa.
Amava música, livros, cinema. Falava sempre de tudo o que via, lia, assistia. E adorava pessoas e solidão. E era bonita, vaidosa. Era crítica, nada falava ou pensava sem fazer reflexões sobre.
Depois, adoeceu. Encucou com muita coisa. Na verdade com uma coisa. Desprezou o seu corpo. Mas, ela era tão e tanto, que mesmo depressiva, que mesmo doendo sempre, que mesmo com câncer, que mesmo sentindo dores recorrentemente, mesmo assim ela era encantadora. E, antes e depois, se permitia. Era uma Pessoa.
E eu morrerei se me esquecer de como foi especial, diferente, importante, feliz ter nascido dela, ter sido criada por ela, ter vivido tudo o que vivi com ela.
Tudo o que eu disser sempre vai ficar aquém. Pois é indizível ter tido a oportunidade de ter vivido ao lado dela.  De ter experimentado o que experimentamos.
Por isso pessoas como Kelli, como Suyanne, como Deise, como mesmo Tiago, como Delaninho, como Gustavo, com Cândida, como Silvinha, Dênia, Lísia, como todos os meus amigos (tantos, tantos, tantos que se eu for citar vou escrever eternamente) que a conheceram são tão importantes também como figuras que conviveram com ela meio que para testemunhar uma época, um fato, uma pessoa, um acontecimento. Que cantaram na cozinha lá de casa, que riram, que choraram, que ouviram-na tanto com sempre suas muitas histórias, que falaram, desabafaram (porque muitos de meus amigos falavam das coisas, conversavam mais com ela do que comigo sobre amores, dúvidas, medos, incertezas). Ela sabia ouvir como ninguém.
Era controversa. Chegando a ser engraçado. Lembro-me de que um dia, quisemos descobrir porque ela juntava a gente em casa, conversávamos cantávamos, bebíamos muito café, comíamos uma coisinha ou outra (porque ela adorava cozinhar e adorava que as pessoas gostassem das comidas que ela fazia ou mesmo, ela era toda jeitosa, cortava queijo, colocava azeitonas, um patê, biscoitinhos num prato e refrigerante a vista, copos para quem quisesse se servir…sempre tinha que oferecer algo, mas sem a insistência chata, era sempre como se partisse de nossa vontade e como ela sabia respeitar os outros!) e de repente, todos nós decidíamos ir embora, deixar para continuarmos os papos e a cantoria amanhã, mas isso sempre coincidia com o cansaço dela. Ela juntava a gente sem que a gente percebesse e desfazia o ajuntamento sem que a gente percebesse também. Era ao bel-prazer dela, a danada. Ela sempre charmosa, cheia de conversa mole. E a gente caindo, caindo.
Quando digo que era gente, Pessoa, é que ela mudava de humor, ficava triste, zangada, não queria ver ninguém, depois voltava toda alegre, eufórica, e isso nem sempre era assim tão evidenciado ou tão antagônico e demarcado, era um cotidiano, um dia-a-dia, mas ela driblava isso com uma beleza simples (se bem que outras tantas sofisticadas).
Pintava quadros, panos, toalhas, bordava, coloria as coisas, dava um outro tom. Lembro-me de ela ter pego uma toalha de renda toda branca e tê-la pintado. Pintou flor por flor. Ainda guardo a tal toalha, inclusive ainda a uso. Ficou um trabalho ímpar. Belo. E ela feliz, orgulhosa, mas,  muito sinceramente soltou: "Essa vai ser a única, pois estou com os olhos arrombados, ô gota!". Era assim. Espontânea. E desarrumava as coisas para rearrumá-las com graça, com arte, com beleza.
Adorava Augusto dos Anjos e o Castro Alves sensual. Citava-os sempre. E vivia lembrando de que o beijo era a véspera do escarro.
Claro que de uma personalidade como a dela eu só posso morrer de falta.
Não era submissa, não passava desapercebida nunca. E me ensinou que a amar e ser amado não significa subjugar a outra pessoa nem estar subjugada.
Não era utilitarista. Não puxava saco. Apesar de ser carinhosíssima e muito compreensiva. Tinha um olho de lince. Sabia viver.
Não olhava para trás quando andava e dizia que se alguém a chamasse pelo segundo nome, nunca acharia que era com ela.
Falava do tempo em que seu pai era gerente de um grande cinema em Propriá com tamanha paixão que me apaixonava também pelas suas histórias. E acho que acabei testemunhando um tempo que não o meu. Como é viva a imagem de um homem que perdera a mãe, foi ao cinema, assistiu a um rama, riu a sessão todinha e, quando todos foram embora, chorou copiosa e dolorosamente, sozinho, emborcado, caído da cadeira, em posição de feto. Essa era uma lembrança dela, que eu herdei e posso testemunhar. Eis a memória coletiva aí, minha gente!
Suas histórias cheias de invenções e memória (pois a memória vem carregada de invenções muitas vezes) faziam dela uma pessoa única para a idade, para a região, para o tipo de vida e os sofrimentos todos que já havia passado e que passava ainda.
Era uma grande amiga.
Outro dia, me enchi de coragem e fui visitar a sua melhor amiga. Elas eram unha e carne há trinta anos. Aprontaram juntas na juventude e era linda a cumplicidade delas.
Ela não era a mesma pessoa. A falta de mainha na vida dela era tão destruidora quanto na minha. Ficamos eu e ela a nos olhar e a saber da falta daquela mulher em nossas vidas. Não tínhamos nada a fazer. A morte é mesmo assim. Ela me disse, perdi a minha amiga. Com os olhos cheios de lágrimas. E eu respondi: eu também.
Ela deixou de fumar no enterro de minha mãe. Mas, depois, a saúde dela declinou. Era como se minha mãe fosse uma força para ela. Quatro anos depois da morte de minha mãe foi como se ela tivesse envelhecido anos. Se minha mãe tivesse viva, talvez isso não tivesse acontecido e aquela jovialidade estivesse ainda pulsando.
Elas  trocavam bilhetes engraçados. E eram irmãs, irmãs. Tia Marilene era testemunha da vida de minha mãe, do que era a mãe de minha mãe para minha mãe. Pois que elas também tinham tido uma amizade muito bonita. Mas, era uma relação muito mais tradicional de mãe-filha, muito mais diferente do que foi a nossa…

Enfim…falta. Vontade de um dedo de prosa com ela que era tão inteligente, tão viva e vivaz, tão interessante, tão envolvente, tão charmosa, tão não cansativa.
Saudades de suas invenções. Saudade de levantar no meio da noite e ela estar fazendo alguma peripécia, de eu perguntar o que era e ela desenrolar um fio de Ariadne e mais fios e fios e dali por diante evocarmos Minemosyne, Clio, Apolo….e Vênus.
A memória, a história, a arte e o amor. Foram ensinamentos que ela me deixou. E são coisas que ela ressignificava a todo momento. Eu sinto falta. Muita. Latente. Para sempre.



domingo, 15 de agosto de 2010

QUEM CHEGAR ANTES, ESPERA O OUTRO, VIU, NINALCIRA?

“Espérame en el cielo corazón
si es que te vas primero
espérame que pronto yo me iré
ahí donde tú estés.

Espérame en el cielo corazón
si es que te vas primero
espérame en el cielo corazón
para empezar de nuevo.

Nuestro amor es tan grande, y tan grande
que nunca termina
y esta vida es tan corta y no basta
para nuestro idilio.

Por eso, yo te pido por favor
me esperes en el cielo
y ahí entre nubes de algodón
haremos nuestro nido”


Não vou esperar o título (risos), mas digamos que tenha a ver com a canção interpretada por uma tal de Mina que toca ao final de “Matador” (1986, de Pedro Almodóvar): eis o que sentia antes e depois daquele grito imenso, que somente eu, Ninalcira e Fábio Rogério ouvimos na madrugada de hoje. Jadson e Tatiana, deitados do outro lado da cama, não ouviram. Por quê? Houve a especulação que tenhamos os três imaginados o grito. Houve a especulação induzida de que o grito teria provido de alguém que acordara de um pesadelo, o que oficialmente nos consolou antes de adormecer. Houve uma saraivada de memórias eróticas antes de eu deitar naquela cama. E haverá muito mais por acontecer daquele instante em diante. Bela madrugada entre amigos, uma das mais ricas de minha vida!

Wesley PC>

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

As sereias

Eu gosto muito das sereias.
Em pequena, queria porque queria ver uma. Ia para a beira do rio. Chamava. Esperava. E, certo dia: senti um medo tremendo.
Saí da margem do rio que era o rio de minha infância sem voltar o olho para trás.
Imaginei a figura de Iemanjá gigante, saindo do mar. E fiquei apavorada. E calada, entrei em casa e fui dormir.
Dia desses, chegamos eu e um grupo de amigos à conclusão de que criança quando acha que fez merda, vai dormir.
Eu sempre ia dormir nessas situações, causando, assim, suspeitas seriíssimas...

Ainda hoje gosto das sereias.
Fato.
Elas são animais, que refletem a beleza feminina e, por isso, são belíssimas e têm um canto tão insólito que encanta, apaixona os homens.

Senti medo naquele dia em que fui dormir mais cedo do canto da sereia.

O mar.
O mar é o meu grande mistério e salvador.
As águas, para ser mais clara e verdadeira.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Meu paraíso

Sempre imaginei o paraíso como uma grande biblioteca. (Jorge Luis Borges)
Por esses dias habitei numa biblioteca. Fugi de minha cidade natal segunda-feira à noite, depois de duas cervejas com uma amiga e depois (que veio antes bem antes) de perceber que eu estava pirando na cidade.
Precisava viver um clima de cidade de interior. Sair de casa e chegar aos lugares caminhando, sem precisar esperar e pegar ônibus. E precisava estudar. Lá eu não estava conseguindo me concentrar. Tudo era motivação para me desviar dos fichamentos dos livros e da escrevinhança do artigo para, enfim, encerrar o período letivo.
A Bicamp (Biblioteca do Campus de Itabaiana) tem um acervo legal. Nada mal. Especialmente o ainda não catalogado e, portanto, disponível apenas para consulta in loco.
Fui criada entre livros. Minha mãe trabalhava na sala de leitura da escola onde eu estudava. Ela estava afastada da sala de aula por conta de um calo na garganta. Por isso aquela voz dela rouca, grave, sensual.
E eu aprendi o fascínio de conviver com os livros, com suas histórias e personagens. E sempre imaginei o paraíso como uma grande biblioteca. Pois a sala de leitura era par mim, muitas vezes, fuga da sala de aula onde as coisas se davam de maneira monótona, disciplinar demais e amorosa de menos.
Na sala de Rodolfo (amigo que trabalha na Bicamp), mais livros: em processo de catalogação e outros para serem restaurados.
A idéia de restauração me fascinou como se eu tivesse de novo do alto de meus cinco anos de idade.
De repente eu era aquela guria loirinha e perguntadeira de antes.
Bombardeei Rodolfo de perguntas e ficava imaginando o processo de restauração dos livros como quase igual ao milagre da multiplicação dos peixes ou dos pães.
O fantástico se apossou de mim.
Imaginei as mãos que restauram livros. todas as mãos do mundo. O cheiro de papel e de cola. A paciência, a dedicação para a restauração. O milagre da renovação. O livro amarelado, poeirento, com páginas frágeis quase virando material para reciclar, sendo transformado, ajeitado, cuidado. Para, assim, continuar compondo as prateleiras das bibliotecas, para continuar sendo companhia da gente.
Imaginei a prática da restauração como uma prática amorosa que se faz devagar, com presteza e atenção.
Uma prática corpórea, sensual.
Os homens e mulheres restauradoras com seus livros nas mãos, sobre as mesas, ressiginificando-os. Soprando-lhes vida nova.