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sábado, 5 de março de 2011

O REIZINHO GAY (Hilda Hilst)

Mudo, pintudão
O reizinho gay
Reinava soberano
Sobre toda nação.
Mas reinava...
APENAS....
Pela linda peroba
Que se lhe advinhava
Entre as coxas grossas.
Quando os doutos do reino
Fizeram-lhe perguntas
Como por exemplo
Se um rei pintudo
Teria o direito
De somente por isso
Ficar sempre mudo
Pela primeira vez
Mostrou-lhes a bronha
Sem cerimônia.
Foi um Oh!!! geral
E desmaios e ais
E doutos e senhoras
Despencaram nos braços
De seus aios.
E de muitos maridos
Sabichões e bispos
Escapou-se um grito.
Daí em diante
Sempre que a multidão
Se mostrava odiosa
Com a falta de palavras
Do chefe da Nação
O reizinho gay
Aparecia indômito
Na rampa ou na sacada
Com a bronha na mão.
E eram ós agudos
Dissidentes mudos
Que se ajoelhavam
Diante do mistério
Desse régio falo
Que de tão gigante
Parecia etéreo.
E foi assim que o reino
Embasbacado, mudo
Aquietou-se sonhando
Com seu rei pintudo.
Mas um dia...
Acabou-se da turba a fantasia.
O reizinho gritou
Na rampa e na sacada
Ao meio-dia:
Ando cansado
De exibir meu mastruço
Para quem nem é russo.
E quero sem demora
Um bocado negro
Para raspar meu ganso.
Quero um cu cabeludo!
E foi assim
Que o reino inteiro
Sucumbiu de susto.
Diante de tal evento...
Desse reino perdido
Na memória dos tempos
Só restaram cinzas
Levadas pelo vento.

Moral da estória:
a palavra é necessária
diante do absurdo.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

AS BACANTES


É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor
Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.

(Hilda Hilst)



Desejo. Ausências. Corpos. Aromas. O vinho. O dionisíaco. Porque Hilda fica assim: pulsando em minha cabeça. Meu corpo-sensação se pergunta a todo momento: aconteceu ou sou uma ficcionista? Antes, sonhava que a música me excitava a ponto de me masturbar com o som. Eu era amante, assim, da música. Uma amante clássica. E é por isso que Ariana, assim aroma, assim corpo, assim bacante, assim tambor, me faz pensar: aconteceu ou sou uma ficcionista?

O meu corpo, eu o sentia corpo de Dionísio. Era a tatuagem dele o ponto de referência do meu olhar. Eu não queria significados. Mas, perguntei, como um tempo a mais para tocá-la e para tocá-lo. Para sentir o relevo da pele em desenho. Proximidade. Nunca pensei no siginifcado de tal palavra. Eu que me denomino sacerdotisa de Baco e, portanto, consagrada aos mistérios desse deus. Os mistérios. Os mistérios e seus significados guardados, velados. Eu, naquele momento de toque, queria era apenas tocar e nada mais. Tocar para sentir. Lamber para saber o gosto. O vinho respirava vivo por entre as veias. Dionísio em mim, Ariana, a preparar o corpo desde quando? Eu não o preparara, ao menos, não que eu assim soubesse. Mas, Pessoa falava, através de Caeiro, que "basta existir para ser completo". O gosto-lembrança não era de completude. Era de loucura inacabada. Bêbedo. Quando um personagem de Nelson Rodrigues falou assim "bêbedo" numa película de Jabor, eu ouvi platéias sorrirem. Mas, eu, Ariana, sabia. Aquela palavra não era para os risos. Era para o gozo. E o gozo, o gozo viria sem vinho, sem bebedeiras. Bêbedo uma vez, era necessário a rudeza da sanidade. Para o gozo, completo da existência pessoana: estar são. Antes, tudo vira sonho ou um não-saber-e-só-sentir-que-se-sabe-que-alguma-coisa-aconteceu. Nem toda existência, assim, Ariana, é completa, é isso o que dizes? Sim, responderia, eu, Ariana. Há aquelas exitências que são insanas. E para tanto, para não mais arder e arder: sábias são todas as ausências, Dionísio.

E, por isso, eu preparo aroma e corpo e festa e, ardendo, sozinha suponho coisas e pensamentos e repito para mim: é bom que seja assim, que não venhas, Dionísio.

P.S.: texto inspirado no poema de Hilda Hilst e nas idéias e adaptações de Zé Celso e no sempre Dionísio, deus amado e querido e sempre ovacionado aqui.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Nossa! O que há com teu peru?

O natal funciona mais ou menos assim para mim. Por isso que não canso de falar que há livros, músicas e filmes que falam por a gente...

"Espírito natalino é um saco preto, hordas de delinqüentes, turbas de atoleimados te exigindo caras, posturas, o riso alvar, cestas, granas e tu mesmo basicamente arruinado, e criancelhas peidando adoidadas, escoiceando os ares, e mãezinhas num azáfama de um cair de tarde bordelesco, pra lá pra cá, e Jeshua entregue às traças, imagine o arrepio do Divino vendo o trotoar dos humanos, enchendo as panças, arrotando grosso, chupando os dentes, enchendo as latrinas, as mandíbulas sempre triturando, e o nenen lá na manjedoura, entre a vaca e o jumento... Que pai é esse que manda o filho pra um planeta de bosta como é a Terra... Se fosse um bom pai, o filho teria encarnado num corvo, a gente só ficaria olhando lá pro corvo nas alturas e dizendo: olha lá o divino, olha que lindo! E o divino com asas, só de nos ver de longe se escafederia, tem dó, pai, aquela gente não, por favor, pai, Abracadabra, pai, me transforma em fumaça, em rojão, em poeira, mas me afasta daqui, me afasta!

E aquele médico bonzinho que arrancou os olhos do Einstein e pôs no vidro e agora vai vendê-los por cinco milhões de dólares! Meu Deus, meu Deus, e o olho tristíssimo (porque viu muito e muito compreendeu) lá no vidro zoiando...

Sim, é verdade, eu tenho medo das gentes, pra dizer a verdade eu me cago de medo das gentes! O que eu tenho visto de pulhas, de máscaras atadas dia e noite sobre umas caras de pedra... O que eu tenho visto de mesquinharia, de crueldade, de torpeza, de estupidez... Que Natal? Que Natal? mudou o quê depois do nascimento do bebê?

"Óia a véia de novo enfezada! E até sendo paga pra escrevê só mardade! E nóis aqui no bem-bom comendo esses pardá, essas rola e esse gato gordo da vizinha! e que que tem cagá? que que tem rrotá? e chupá dente num é bom? e pur que ela chama a gente de delinquente? que que é horda, hen? e turba? E querê que o divino seja corvo, ó dotô, manda prendê essa muié, que eu até esqueci de fritá os ovo do menino Josué, também que que tem, é Natar e ele já tava morto!" Bom dia! Bom almoço!".

Hilda Hilst, in: Cascos & Carícias

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade.

Sempre fui muito dado mesmo ao erotismo... às revistinhas de sacanagem, aos filminhos pornôs, à safadeza, enfim, de uma maneira geral. Vivi recatado no interior do Estado como mocinho puro filho de pessoas respeitadas, logo, mocinho de família... mas, no cantinho de meu quarto, as paredes amarelo-amarronzadas eram a concreta denúncia de meus atos mais libidinosos. Sem paciência para guardanapos, as paredes serviam de capacho para as minhas mãos lascivas. Aos pobres, disse certa vez Bukowisk, resta o sexo e o alcoolismo. A mim, que me entendo não por gente, mas por Alma Livre, embora em perene angústia a vagar nesse vil purgatório, parece ter restado mesmo o DESEJO. Dou um passo e latejo.

Lendo o Cartas de um sedutor, de Hildinha (rs), me deparei, sem muita ênfase, com a sugestão que faz do livro de João Silvério Trevisan “Devassos no paraíso”. O livro da escritora já é bem delicioso e libertino, mas andando pela livraria como se a andar atrás de diversão, eis que se expõe para mim feito michê, o livro do Trevisan. Leio-o como se a beber vinho. Ao mesmo tempo em que se enrijece o meu pau, conheço coisas fascinantes, me introduzo em conhecimento sobre o “homoerotismo”, ou homossexualidade, ou homossexualismo (e aí, já não significam mesmo para mim a mesma coisa) de maneira nunca antes pensada por mim.

O Trevisan cita fatos históricos da época do Brasil Colônia muito relevantes e desmunhecadores. Quando penso que estou a ler um texto meramente acadêmico, de repente, estou molhado de tesão, ou mergulhado em revolta. E não apenas. Eis uma pequena citação de um livro de Conrad Detrez, escritor Belga que veio ao Brasil na época da ditadura militar prestar serviços de seminarista:

“Meu amigo me prendeu bruscamente entre suas pernas, abriu minhas nádegas, me penetrou. Urrei de dor. Minha carne, minha pele se rasgaram. Sangrei, gritei que o amava, que ele estava me matando, que estava doendo, doendo muito, e que eu me entregava. Meu esperma jorrou sob mim, meu sangue escorreu por minhas coxas. Dormimos, comemos, nos amamos num cheiro de sangue seco, de suor, vivemos dois dias numa mistura de lágrimas e de jogos, de carícias muito suaves e perigosas, sentados, deitados, em pé, cometendo todos os desregramentos, todos os excessos que nossa imaginação pudesse conceber, excessos que nos teriam levado à morte se o Carnaval não tivesse terminado”.

Bem, ainda não o terminei. Tenho, pois, muitas outras coisas a fazer... o livro é grosso e pelo que me parece fora atualizado para a reedição. A primeira se esgotou há mais de dez anos desde a publicação. Moral da história: não sirvo mesmo para disciplinaridade, com tanta coisa para estudar, acabo sempre me inclinando à devassidão. Adoooro.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Quem és? Perguntei ao desejo.
                Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.

Do Desejo, Hilda Hilst.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O nome da morte

E: Túrgida-mínima, amada, torpe, esquiva, cavalinha, criança, rainha, Velhíssima-Pequenina, Menina-Morte, soberba, amiga, cavalo, búfalo, acróbata de guarda-sóis, amantíssima, Nada, Morte-Ventura, rosto de ninguém, prisma, púrpura, ungüento, duna, riso, sonido, altura, flanco de acácias, negra cavalinha, minha irmã e Tempo-Morte para a morte?

Ô susto é ler Da morte. Odes mínimas.

Dá para apelidar a xereca com maiores possibilidades de nome agora, viu?

Faz-se esudo de tudo no mundo, não é mesmo? E das obras de Hilda Hilst, então, nem se fala. Um estudioso de sobrenome Pécora, listou os muitos nomes para o órgão sexual tanto feminino quanto masculino que aparecem na obra de Hilda. Achei de uma importância ímpar para mim, Tiago e Jadão:

Para o feminino: cona biriba rosa xiruba xereca mata perseguida pomba gaveta garanhona vulva choca xirica pataca caverna gruta fornalha urinol chambica poça xiriba Maldita brecheca camélia bonina nhaca petúnia babaca ‘os meios’ crica. Para o masculino, não tem menos copiosidade de registros: bagre mastruço bastão quiabo rombudo gaita taco ponteiro Sabiá malho verga mangará ‘um não sei o quê’ cifa farfalho chourição picaço cipó estrovenga toreba besugo porongo envernizado mondrongo trabuco bimbinha fuso mango manjuba pau-barbudo chonga vara ganso.

Agora, o que mais me deixa de boca aberta é concluir A obscena senhora D e ter visto Hillé chamar por deus também usando vários nomes, mas Porco-Menino Construtor do Mundo me deixa estarrecida.

Toda leitura é uma cicatriz.

Toda leitura é uma cicatriz.
Desde antes de ontem que ponho o dedo naquilo que estava quase a sarar.
Reli A obescena senhora D,  de Hilda Hilst. Reli Quero minha mãe, de Adélia Prado. E estou carregando comigo um livro muito marcado (todo riscado, como costumo deizer: um livro vivido) e que me cicatrizou uns muitos sentires: Água viva, de Clarice Lispector.

Brinquei com Jadson que estava meio suicida e ele me salvou ontem me levando para a rua.
Hoje, voltei ávida por essas leituras-cicatrizes de mim.

Por que?

Tô lendo a trabalho.
Coadunando idéias. Achando como são fortes as presenças dos bichos na escritura das três moças.
As três-moças-das-águas-de-meus-sonhos.

Será que não posso mesmo enxergar a questão de uma zoopoética de Deus nesses bichos dessas moças?

Buscando. Buscando. Cortando-me. Cicatrizando-me.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Coincidência hilstiana ou amor demais? Eu acredito em milagres, sim.


Estava eu a ler sobre Hilda Hilst no Cadernos de Literatura Brasileira. Lia entrevistas suas. Pensava-sentia o quão maçante já estava para ela alguma perguntas. E de repente, outra vez, me vi emocionada ao ler o que ela dizia sobre Caio Fernando Abreu (antes, eu tinha lido uma carta deste para ela, sobre um livro dela, sobre a amizade que viviam), sobre antes de sua morte.
Parei um pouco de ler. Óculos embaçados. Pensei em Jadson. Pensei igualzinho eu sinto por ele. Lembrei-me de Tiago e seu amor por Caio Fernanddo Abreu. Lembrei-me também que sinto o que dizia Hilda sentir por Caio Fernando Abreu também por Tiaguinho.
E, mal limpei os olhos, melequentos (oh tão trágica sou eu!), mal os havia limpado: liga-me Jadson.
Senti um arrepio tomar meu corpo.
Os braços.

Eu acredito em milagres, sim.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

I
É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora
E sozinha supor
Que se estivesses dentro
Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora
Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.

II
Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu
Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.

III
A minha Casa é gurdiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência
E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.
A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?
VI
Três luas, Dionísio, não te vejo.
Três luas percorro a Casa, a minha,
E entre o pátio e a figueira
Converso e passeio com meus cães
E fingindo altivez digo à minha estrela
Essa que é inteira prata, dez mil sóis
Sirius pressaga
Que Ariana pode estar sozinha
Sem Dionísio, sem riqueza ou fama
Porque há dentro dela um sol maior:
Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada, mais luzente e alta
Quando tu, Dionísio, não estás.
VIII
Se Clódia desprezou Catulo
E teve Rufus, Quintius, Gelius
Inacius e Ravidus
Tu podes muito bem, Dionísio,
Ter mais cinco mulheres
E desprezar Ariana
Que é centelha e âncora
E refrescar tuas noites
Com teus amores breves.
Ariana e Catulo, luxuriantes
Pretendem eternidade, e a coisa breve
A alma dos poetas não inflama.
Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta
Que seja sempre terra o que é celeste
E que terrestre não seja o que é só terra.

IX
           “Conta-se que havia na China uma mulher
   belíssima que enlouquecia de amor todos
   os homens. Mas certa vez caiu nas
   profundezas de um lago e assustou os peixes.”

Tenho meditado e sofrido
Irmanada com esse corpo
E seu aquático jazigo
Pensando
Que se a mim não deram
Esplêndida beleza
Deram-me a garganta
Esplandecida: a palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida.
E te assustas do meu canto.
Tendo-me a mim
Preexistida e exata
Apenas tu, Dionísio, é que recusas
Ariana suspensa nas tuas águas.

X
Se todas as tuas noites fossem minhas
Eu te daria, Dionísio, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa
E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.
Se todos os teus dias fossem meus
Eu te daria, Dionísio, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
E agudo se faria o gozo teu.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

"Te amo como as begônias tarântulas amam seus congêneres, como as serpentes se amam enroscadas lentas algumas muito verdes outras escuras, a cruz na testa lerdas prenhes, dessa agudez que me rodeia, te amo ainda que isso te fulmine ou que um soco na minha cara me faça menos osso e mais verdade."
"Alguns doutos em ciências descobriram que quanto maior o intestino, mais místico o indivíduo. E quem mais místico que Deus? Grande Intestino, orai por nós". Hilda Hilst

domingo, 30 de maio de 2010

Hilda Hilst










Gente! Estou imparável hoje com essas (minhas) mulheres.

Ando mesmo querendo repensar o uso de pronomes possessivos nas falas que divido comigo mesma e com os outros. Mas, uma dificuldade: a Literatura. Os livros, as personagens, as escritoras (e os escritores) que amo, que me rodeiam. Eu acabo feito criança que diz que tudo é seu. Assim tendo a escrever/falar: minhas escritoras, meus lviros, meus textos...Valei-me senhor são brás dos egoísmos inocentes e sem intenção de o ser!

Eis uma das minhas escritoras prediletas. Gurua de minha vida!

E.G.E. (ESQUADRÃO GERIÁTRICO DE EXTERMÍNIO) - Hilda Hilst

(Segunda-feira, 3 de maio de 1993)

O poeta pode ser violento. A maior parte das vezes contra si mesmo. Um tiro no peito, gás, veneno, um tiro na boca, como fez Hemingway, que também foi poeta em O Velho e o Mar; Maiakóvski, um tiro no peito; Sylvia Plath, gás de cozinha; Ana Cristina César, um salto pelos ares; etc etc etc. "Os delicados preferem morrer", dizia Drummond. Mas esta modesta articulista, sobretudo poeta, diante das denúncias feitas pela revista Veja, todos aqueles poços perfurados em prol de uma única pessoa ou em prol de amiguelhos de sua excelência, presidente da Câmara, senhor Inocêncio (a indústria da seca), e o outro com seu lindo carro às custas de gaze e esparadrapo... Credo, gente, quando você vê televisão ou in loco o povão famélico, desdentado, mirrado... Um amigo meu foi para o Ceará e passou os dias chorando! As crianças todas tortas, todos pedindo comida sem parar... e 500 toneladas de farinha apodrecendo... e montes de feijão desviados para uma só pessoa... (um parênteses, porque meu coração de poeta pede a forca, o fuzilamento, cadeia, cadeia para aqueles que se locupletam à custa da miséria absoluta, da dor, da doença). Gente, eu já estou uma fúria e para ficar mais calma proponho algumas coisas mais sutis, por exemplo: o Esquadrão Geriátrico de Extermínio, a sigla óbvia seria EGE. Arregimentaríamos várias senhoras da terceira idade, eu inclusive, lógico, e com nossas bengalinhas em ponta, uma ponta-estilete besuntada de curare (alguns jovens recrutas amigos viajariam até os Txucarramãe ou os Kranhacarore para consegui-lo) nos comícios, nos palanques, nas Câmaras, no Senado, espetaríamos as perniciosas nádegas ou o distinto buraco malcheiroso desses vilões, nós, velhinhas misturadas às massas, e assim ninguém nos notaria, como ninguém nunca nota a velhice. Nossas vidas ficariam dilatadas de significado, ó que beleza espetar bundões assassinos, nós faceiras matadoras de monstros!

O curare é altamente eficiente, provoca rapidinho a paralisia completa de todos os músculos transversais (bunda é transversal?) e em seguidinha sobrevém a morte por parada respiratória. Ficaríamos todas ao redor do coitadinho, abanando: óóóó, morreu é? Um pedido ao presidente Itamar: severidade, excelência, é ignominioso, indigno, insultante para todos nós, deste pobre Brasil tão saqueado, que essas terríveis denúncias terminem no vazio, no nada, na impunidade. É sobretudo perigoso porque:

de cima do palanque

de cima da alta poltrona estofada

de cima da rampa

olhar de cima

LÍDERES, o povo

Não é paisagem

Nem mansa geografia

Para a voragem

Do vosso olho.

POVO, POLVO

UM DIA.

O povo não é o rio

De mínimas águas

Sempre iguais.

Mais fundo, mais além

E por onde navegais

Uma nova canção

De um novo mundo.

E sem sorrir

Vos digo:

O povo não é

Esse pretenso ovo

Que fingis alisar,

Essa superfície

Que jamais castiga

Vossos dedos furtivos.

POVO. POLVO.

LÚCIDA VIGÍLIA.

UM DIA.


Fluxo-floema - Hilda Hilst (uma forma de amor: entregar textos-vida assim: puft! "Entrego-vos este assim: puft! Preciso dizer: amo-os?)



Osmo

Enfim, o existir não me confunde nada. O que me confunde é a vontade súbita de me dizer, de me confessar, às vezes eu penso que alguém está dentro de mim, não alguém totalmente desconhecido, mas alguém que se parece a mim mesmo, que tem delicadas excrescências, uns pontos rosados, outros mais escuros, um rosado vermelho indefinido, e quando chego bem perto dos pequenos círculos, quando tento fixá-los, vejo que eles têm vida própria, que não são imóveis como os poros de Mirtza, que eles se contraem, se expandem, que eles estão à espera... de quê? De meus atos. Não meus atos cotidianos, nada disso de se levantar da cama, tomar resoluções, banho caminhar, não é nada disso, talvez em alguns dias, quem sabe, esses pequenos atos se encadeiem de modo me levar ao grande ato, não sei, preciso refletir mais demoradamente, e chamo o meu ato de grande ato não porque ele tenha importância para mim, para mim é simples, é apenas muito estimulante, mas o grande ato deve ter importância para a maior parte das gentes, ah, isto eu sinto que é verdade, porque se não tivesse importância eu não me confundiria tanto, quero dizer, eu não ficaria tão em dúvida quanto à possibilidade de me dizer aos outros, de me confessar. E quando faço o que convencionei chamar de “o grande ato”, vejo que um daqueles pontos rosados se fecha, cicatriza, é como se nunca ele tivesse existido, porque a pele desse outro alguém que está dentro de mim, a pele do dono desses pontos rosados, só deseja uma coisa: desfazer-se das delicadas excrescências. Quando eu penso em todas essas coisas, penso também na dificuldade de descrevê-las com nitidez para todos vocês. Vocês são muitos, ou não? Gostaria de me confessar a muitos, gostaria de ter uma praça, um descampado talvez fosse melhor, porque no descampado, olhando para todos os lados (não se preocupem com as minhas rimas internas) para essa coisa de norte sul leste oeste, vocês compreenderiam com maior clareza, vocês respirariam mais facilmente, e poderiam vomitar também sem a preocupação de sujar o cimento, poderiam vomitar e jogar em seguida um pouco de terra sobre o vômito, e quem sabe depois vocês fariam pequenas bolas com todos os vômitos, naturalmente usando luvas especiais, claro, e lançariam as bolas com ferocidade sobre mim. E se houvesse alguém parecido comigo, eu o colocaria ao meu lado, e quem sabe depois viria mais alguém, e outros e muitos, e ficasse um apenas, a atirar o seu bolo de vômito e terra sobre nós, isso seria o ideal porque poderíamos organizar uma bela partida de beisebol, beisebol sim, beisebol é mais vida, a bola a gente agarra, a gente abraça, a gente encosta no peito. Beisebol sim. Incrível. Eu não imaginava conseguir dizer tanto. Incrível. Eu sempre me penso fechado, sobre mim uma lâmina de pura resistência, uma lâmina coesa, fosca, uma lâmina sobre os meus costados, chegando até a cabeça, em forma de viseira, se colocando depois sobre o meu rosto, e eu carrego esta lâmina e ando um pouco agachado, assim como esses velhos que têm sempre um feixe de lenha sobre os ombros, e olhem que eu sou bem alto, e assim mesmo me seu agachado. (...) Penso: vocês não serão culpados do meu grande ato?

O Unicórnio

Dizem que todos os pervertidos sexuais têm mau caráter. Dizem, eu sei. Você acredita? Acredito sim. No aspecto físico ela era uma adolescente sem espinhas. E ele? Espere, quero falar mais dela. Muito bem, espinhas então. Isso não é tudo. Quando ela me falava de sexo, debaixo da figueira, eu começava a rir inevitavelmente. Que coisa saberia do sexo aquela adolescente limpinha? E depois, veja bem se era possível levar a sério: ela usava uma calcinha onde havia um gatinho pintado. Quê? Juro. Você viu a calcinha? A calcinha foi pendurada certa vez num prego do banheiro: você jura que eu estou vendo um gato pintado na tua calcinha? Ela sorriu. Mas o gato teria por certo uma finalidade. Que finalidade pode ter um gato pintado numa calcinha? É, moça, não sei essas coisas são complicadas, podem ser ingênuas e engraçadas para você e muito eficientes, assim, no plano erótico, para o outro. É, isso é. E o irmão? Espere, quero falar mais dela. Um gato, então. Muito criativo. Mas havia mais. Mais do que um? Não, não, havia uma certa escuridão no olhar, principalmente quando ela estava perto dele. Do irmão? É. Ela tinha medo do irmão? A escuridão vinha do medo? A escuridão talvez viesse do medo de se sentir com medo. A mãe era uma possessiva gorda. Espere um pouco, você vai falar da mãe? Não, quero falar mais dela. Quando eu a vi pela primeira vez, ela mantinha uma postura de humildade. A palavra postura é palavra de uma das minhas velhas amigas, uma que queria ser santa e sábia. De início, vamos chamá-la “a sábia”. Era escritora. Chorava quando escrevia. Você vai falar da sábia? Não, ainda quero falar da outra. Então paramos...ah, sim, uma postura de humildade. Foi isso que eu disse? Exatamente assim. Mas era humildade e temor. Depois veremos. Naquela tarde eu dizia uns poemas na biblioteca da cidade, em memória de um amigo poeta. Ela disse: é bonita a sua poesia. Eu fiquei comovida, eu me comovo com tudo. É, vê-se, vê-se. Combinamos que ela iria a minha casa. Foi. O irmão também.

Com os meus olhos de cão - Hilda Hilst


Deus? Uma superfície de gelo ancorada no riso. Isso era Deus. Ainda assim tentava agarrar-se àquele nada, deslizava geladas cambalhotas até encontrar o cordame grosso da âncora e descia em direção àquele riso. Tocou-se. Estava vivo sim. Quando menino perguntou à mãe: e o cachorro? A mãe: o cachorro morreu. Então atirou-se à terra coalhada de abóboras, colou-se a uma toda torta, cilindro e cabeça ocre, e esgoelou: como morreu? como morreu? O pai: mulher, esse menino é idiota, tira ele de cima dessa abóbora. Morreu. Fodeu-se disse o pai, assim ó, fechou os dedos da mão esquerda sobre a palma espalmada da direita, repetiu: fodeu-se. Assim é que soube da morte. Amós Kéres, quarenta e oito anos, matemático, parou o carro no topo da pequena colina, abriu a porta e desceu. De onde estava via o edifício da Universidade. Prostíbulos Igreja Estado Universidade. Todos se pareciam. Cochichos, confissões, vaidade, discursos, paramentos, obscenidades, confraria. O reitor: professor Amós Kéres, certos rumores chegaram ao meu conhecimento. Pois não. Quer um café? Não. O reitor tira os óculos. Mastiga suavemente uma das hastes. Não quer mesmo um café? Obrigado não. Bem, vejamos, eu compreendo que matemática pura evite as evidências, gosta de Bertrand Russell, professor Amós? Sim. Bem, saiba que jamais esqueci uma certa frase em algum de seus magníficos livros. Dos meus? O senhor escreveu algum livro, professor? Não. Falos dos livros de Bertrand Russell. Ah. E a frase é a seguinte: “a evidência é sempre inimiga da exatidão”. Claro. Pois bem, o que sei sobre suas aulas é que não só elas não são nada evidentes como... perdão, professor, alô alô, claro minha querida, evidente que sou eu, agora estou ocupado, claro meu bem, então vai levá-lo ao dentista, sei sei... Amós passou a língua sobre as gengivas. Também deveria ir ao dentista, (claro que ele tem que ir) com a idade tudo vai piorando ele chegou a me dizer da última vez, quando foi mesmo? não importa, mas disse senhor Amós há uma tensão em toda sua mandíbula, tensão de um executivo falindo, é fantástico, o senhor não acorda com dores nos maxilares? Acordo. Então é isso, temos de acertar a sua arcada. Quanto? Ah, é um trabalho difícil. Mas quanto? (mas minha querida, o garoto tá muito manhoso, tem que ir, os dentistas agora são verdadeiras moças, deixa que eu falo com ele, um instante só professor). Pois não. Ah, dispendioso, veja, temos de acertar todos os dentes de cima e quase todos os de baixo, e os de baixo são importantíssimos, nunca se deve perder um dente de baixo, são suportes para futuras pontes, o seu aqui de baixo tá todo roído. (alô filhinho, papai quer que você vá ao dentista, não começa com isso, compro o tênis sim, drops, sei, o que shorts? ah, isso não garanto, então levo levo, certo filhinho, alô, evidente que sou eu minha querida, ele vai sim, chego cedo sim tchau tchau) Bem, onde é que estávamos, professor Amós? Respondo: nas evidências. Ah sim. Colocou os óculos novamente: o senhor parece não me levar a sério. Como assim? Notei que sorriu de um jeito um pouco, digamos, professor, um jeito condescendente, assim como se eu fosse... tolo? Impressão sua, apenas também me lembrei de uma frase. Diga, professor. Então digo a frase: “inventar um simbolismo novo e difícil no qual nada pareça evidente”, ele achava isso bom. Quem? Bertrand Russell. Ah. Continuemos, professor, não posso me demorar muito mas por favor tire férias, vinte dias, descanse. Mas o senhor não me falou claramente dos rumores. Como queira: há evidentes sinais de vaguidão. Como? De alheamento, se quiser, sim, de alheamento de sua parte durante as aulas, frases que se interrompem e que só continuam depois de quinze minutos, professor Amós, quinze minutos é demais, consta que o senhor simplesmente desliga. Desligo? Que frases eram? Não importa, por favor descanse, tome vitaminas, calmantes. Tira novamente os óculos, cobre o lábio de cima com o de baixo, suspira, sorri: vamos vamos, não se aborreça, o senhor tem sido sempre escorreito, excelente mesmo, mas cá entre nós... O reitor segura-me o braço, comprime seus dedos ao redor do meu pulso: cá entre nós, eles não estão entendendo mais nada. Quem? Seus alunos, professor, seus alunos. Estranho digo, na última aula repensamos fraudas, inícios... a raiz quadrada de um número negativo. Citei um matemático do século doze, Bramine Bascara: “O quadrado de um número positivo, tal como o de um número negativo, é positivo. Portanto a raiz quadrada de um número positivo é dupla, ao mesmo tempo positiva e negativa. Não há raiz quadrada de um número negativo, pois o número negativo não é um quadrado.” no entanto Cardan, no século dezesseis... O reitor mordeu o lábio inferior, fitou-me longamente, estendeu a mão: boa sorte, professor, férias. Atravesso o pátio. Depois corredores, gramados. Na adolescência a professora de radação pedira três contos breves. Short stories, meninos, sabem o que são short stories? Alguns babacas levantaram a mão. Muito bem, quem não souber pergunta aos outros, muito bem. Dois de meus colegas mostraram-me continhos imbecis, farfalhar de folhas passarelhos nos ramos brisas na cara etc. Aí escrevi:
Primeiro conto (vulgo short stories) __ Mãezinha, ando farto das tuas besteiras sobre moralidade e família à hora do jantar. Já te vi várias vezes chupando o pau de papai. Me deixa em paz. Assinado, Júnior.
Segundo conto (vulgo short stories) __ Vidinha, pensa bem, tu tem cinqüenta e eu vinte e cinco. Tu diz que é o espírito que conta. Eu compreendo Vidinha, mas tô me mandando. Não deprime. A gente se cruza, tá? Assinado, Laércio. Toda essa fala eu ouvi tomando guaraná no balcão de um armazém. Ele era um garotão, ela uma gordota de olho pretinho.
Terceiro conto (vulgo short stories) __ O nome dele é Sol e Adultério. O do meu marido é Elias. Meus filhos se chamam Ednilson e Joaquim. Tenho vontade que todos morram. Menos ele. (Aquele primeiro, luz e cama.) Sinto muito meu Deus, mas é assim. Assinado: Lazinha. Deste eu gosto muito. Adultério lhe parecia na adolescência uma palavra belíssima. Agora também. Depois da Aids, menos. Luz e cama foi um achado. A professora esbofeteou-lhe a cara. O pessoal do farfalhar de folhas passarelhos nos ramos brisas na cara teve como prêmio um piquenique. As notas mais altas de redação praqueles bobocas. Amós foi expulso. Perdeu o ano. Pegou pneumonia. Os coleguinhas mandaram-lhe um poema breve: Bancou o sabido, o espertinho, o vivo/ e só se fodeu / Amós, o inventivo.

Assumo: amo: Clarice, Hilda, Adélia, Alina, Vírginia, Katerine...
Mas, não dá para negar: puta-que-pariu! Hilda me tira a voz. E eu adoro. Adoro.