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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Uma história comum


Durante o dia, sob o sol e o barulho anônimo de pessoas outras pelas ruas, nos transportes coletivos, no trânsito, nos escritórios, nas lanchonetes e em praças e por todos os lugares da cidade, ela vivia muito bem. Disfarçava seus medos e sua solidão em pequenos cuidados e era, assim, uma pessoa atenta e prática.
À noite, trancada em seu minúsculo apartamento, sentia o peso de tudo aquilo que ela esquecera sob o sol. A lua, fosse minguante ou cheia a enlouquecer também a sua cabeça, a lua trazia o mais fundo dela para a pele. Ali, na beira de si, ela não sabia o que fazer com ela mesma.
Ouvia música, lia, tomava vinho, telefonava. Mas, a lua estava ali, ameaçadora e espelho. O espelho do de dentro.
Masturbava-se e se sentia triste quando deixava a porta entreaberta e o zelador, pontual, vinha a espreitar-lhe. Entrestecia de uma tristeza estranha porque fora ela quem começara o jogo exibicionista.
No outro dia, pela manhã, olhava-o e nada sentia: vazia. Era como se ela fosse só o líquido gozo e ele a tivesse sugado para dentro dele com o olhar apenas. Ele a bebera de longe, sugara o seu mel e o seu leite. A ferida sarava no quente da manhã, no quente do dia. O sol. E ciclicamente a lua. Sol. Lua. Solidão. O mel. A ferida. A repetição e o fim. Em sua lápide, palavras que nada diziam sobre ela, verdadeiramente.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Fui-me embora. Doía-me os pés e a cabeça. Sangrava a alma e a cara carregava um riso plácido, meio bobo, como que contrariando tudo o que por dentro se passava.
Busquei a lonjura dos lugares para acertar as contas comigo mesma. Que é que era isso de por dentro uma coisa e por fora: essa cara risonha?
Comigo não seria mais assim não.
Contradição é uma coisa. Estudada e muito e desde sempre. Mas, essa da cara já era mesmo implicância e não pura incoerência nossa de todos os dias.
As lonjuras não possuem espelhos. Não possuem primeiros socorros. Visto que os últimos me cabem muito bem.
As privadas das lonjuras são imundas. Fedem. E é como se fosse um tipo de sofrimento necessário no sentido cristão da palavra sofrimento. O fedor como se fossem lapadas de chicote nas costas de um monge.
Faz frio nas lonjuras. Chove e fica tudo cinza. O vermelho é só do corte. Do pé e da alma.
A cara não sei como anda. Não a vejo há dias.  Às vezes a sinto como se estivesse vermelha. E penso: sangra? Não levo a mão ao rosto. Nada de carinhos.
Fui-me embora.
Depois, eu volto.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Contando ovelhas – ou insônia danada, se vocês quiserem.



Ouço uma música bonita. Simples. Cantada em outra língua. Fala de amor? Não sei. A melodia me faz quase fechar os olhos e voar daqui. Para onde?
São ovelhas que conto para dormir. Ponho chapéu, laços, botas, pinto-as a cada uma de uma cor. Dou vida a essas minhas ovelhinhas. Serelepes algumas. Outras gordas, nem pulam. Apenas fazem méééééé e se mexem, ousadas, robustas. Gostosas, até. Gordura é sinal de formosura, meu bem! Pula, ovelhinha, pula! Não posso empacar no cem. Quero ir até mil, ouviu fofinha?
Fofinha é o caralho! Não vou desmanchar meu vestido assim pulando por causa de uma louca insone. Vou ficar aqui. Não me arrisco em cerca qualquer.
Volto do cem mesmo. Essa não pula nem a pau. Encontro ovelhas legais. Uma que viu um E.T. tem os olhos esbugalhados e parece doidona, tadinha. Feliz? Marijuana? Ou E.T. mesmo? Eu vi a luz. Era E.T., minha gente. Ela tem até a lã bagunçada, arrepiada, sei lá. Não, não é punk essa ovelha. A outra sim. Essa viu mesmo extraterrestre. E, por isso, também não quer pular, a desgracida.
Assim o sono não vem nunca!
Uma é gostosa demais par pular. A outra, é maluca, meu Deus!
Imagino que vou me deparar com uma ilustração do kama sutra quando chegar a ovelha de número 69.
Não. Mas, confesso que estava ansiosa. Mas, essa pulou rapidinho. Era bem normalzinha a de número 69... Opa! Pulou a cerca mesmo, MESMO! Vejo-a, a de número 69, do outro lado. Tinha uma cartola na cabeça e agora, agora ela está na posição que supus. Mas, não é do carneirinho a lingüinha ilustrativa. É de um sapo! Verde! Grande Gordo sapo de língua...todos sabem bem como é que é a língua dos sapos. Eles a lançam longe em busca de mosquitos, de moscas. E a simples ovelhinha soube bem me enganar e distrair! Essa foi a melhor pulada de cerca que uma ovelha poderia pular nas minhas insônias! Sapos são sapos com suas línguas e não são príncipes não. Danada!
Já pulei cem ovelhas. Cem não, noventa e nove. Noventa e nove não, noventa e oito. Por conta da gostosa e a doidona, né? A do 69 pulou sim e pulou feliz da vida ao encontrar um sapo de firme língua (ambígua).
De todos os tipos. As ovelhas. Quase todas as noites. As que não tomo diazepan. Com paz. Bonito nome diazepínico. Compaz.
Voltei as noventa e oito. Sempre assim: primeiro, cem da direita para a esquerda. Depois, voltam da esquerda para a direita. 1, 2, 3, 4...100. Então: 100, 99, 98...3, 2, 1.
Encontro cada ovelha nesses descaminhos, que só eu sei! Mas, agora, escuto uma música bonita. Simples. Cantada em outra língua. Fala de amor? Não sei. A melodia me faz quase fechar os olhos e voar daqui. Para onde?
Os olhos pesados, pesados. É uma ovelha. Com violão. Country é o que ela toca.
Voar, voar. Cadê a do E.T.? Meu Deus. Voar para onde?????????
                                                                                             

sábado, 19 de junho de 2010

Dos lugares - Zicartola


Em Buraco (apelido carinhoso de nossa querida cidade), é comum reclamarmos que não há um lugar para irmos. Os lugares são ou elitizados ou alocam eventos que começam muito tarde da noite e, por esse motivo, torna-se de difícil acesso para quem não tem carro ou, no mínimo, carona certa.
Os domingos em Buraco são entediantes, os sábados mal-aproveitados, etc.
Como havia postado algo sobre o grande Cartola, não resisti e busquei um vídeo para mostrar um pouco do que foi e do significado do restaurante Zicartola: espaço onde havia excelente comida, pois Zica cozinhava muito bem, e excelente música, a saber, foi lá que teve nascimento a carreira de Paulinho da Viola!
Um trecho dessa história segue abaixo, retirado do livro "Paulinho da Viola, sambista e chorão", de João Máximo:

“(...) Zicartola, restaurante que Angenor de Oliveira, o Cartola, iluminado compositor, e sua mulher Zica, exímia cozinheira, abriram no sobrado da Rua da Carioca, 53. O restaurante foi uma espécie de extensão das reuniões que se faziam em outro local, o segundo andar da Rua dos Andradas, 81, onde funcionava a Associação das Escolas de Samba e onde Cartola e Zica viveram por algum tempo, ele como vigia de todo o prédio. Cartola – depois de longo sumiço que levara quase todo mundo a supô-lo morto – fora redescoberto por Sérgio Porto enquanto lavava carros em Copacabana. Para Sérgio, aquele negro magro, de nariz estranho, tumoroso, era o personagem principal das histórias que o tio Lúcio Rangel lhe contava, ilustradas por sambas admiráveis. Redescobrir o ‘falecido Cartola’ foi como dar vida a uma lenda. E Sérgio, cronista mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta, teria todo o direito de gabar-se disso até o fim de seus dias.
O que se passou na Rua dos Andradas foi assim como se o Brasil quisesse recuperar o tempo perdido sem a música de Cartola. Pois era justamente para ver e ouvir Cartola que iam lá incontáveis sambistas, de início os mais ligados à tradição, como Zé Kéti e o jovem Élton [Medeiros]. (...) Zé Kéti aproximou-se de Cartola porque este tinha uma idéia: organizar um conjunto de samba a ser batizado de A Voz do Morro (...) O (...) conjunto – formado entre outros por Cartola, Nélson Cavaquinho, Jair do Cavaquinho, Nuno Veloso, Zé Kéti e o jovem Élton – não passou da idéia. O que não impediu que aquelas reuniões musicais ganhassem fama. Em pouco eram prestigiadas não só por representantes da bossa nova, como Carlos Lyra e Nélson Lins e Barros, mas por gente de outras cidades, outros estados, fazendeiro fretando avião a fim de levar seu povo para conhecer Cartola. Resultado: o sobrado ficou pequeno para tanta gente. Por isso Eugênio Agostini, um empresário louco por samba, deu a Zica a idéia do restaurante. Ele e os pri
mos Renato e Fábio seriam seus sócios, naturalmente bancando os gastos iniciais. Os pratos dela e os sambas de Cartola haveriam de fazer o resto. Que ela mesma procurasse o lugar para a nova casa. Andou, andou e achou o sobrado da Rua da Carioca.
O Zicartola duraria pouco, apenas 20 meses. Mas marcaria de forma profunda a vida cultural da cidade, ou mesmo do país, na música, no teatro, na poesia e nas idéias que eram discutidas nas noites das quartas e sextas-feiras, às mesas distribuídas pelo pequeno restaurante. Começou a funcionar em 9 de setembro de 1963, mas só em 18 de outubro foi considerado pronto para a inauguração oficial. Pratos e sambas não seriam o bastante para compensar os prejuízos causados pelos muitos amigos que chegavam, ouviam música, comiam, bebiam e penduravam as contas para nunca mais (sem falar nos que andaram metendo a mão na contabilidade de Cartola, grande artista, péssimo negociante). Mas o restaurante seria, durante esse tempo, um verdadeiro templo. (...) Ali professavam sua fé no samba tradicional Ismael Silva, Nélson Cavaquinho, Carlos Cachaça, bambas da Mangueira, da Portela, do Império Serrano, do Salgueiro, de toda parte.
Eram dois shows, sempre nas noites de quartas e sextas. No primeiro, aqueles bambas se apresentavam sob a direção musical de Zé Kéti. No segundo, brilhavam Cartola e seu violão. Seguia-se o grand finale, no qual um convidado ilustre recebia a Ordem da Cartola Dourada, criada por Hermínio [Bello de Carvalho]. (...)
Foi Hermínio quem levou Paulo César ao Zicartola. Um fato importante na vida do então bancário, pois ali ele ficou conhecendo sambistas que, em sua timidez, eram entidades inatingíveis. Mais importante: passava a ser um deles. Desde sua estréia no primeiro show da noite, cantando sambas dos outros, causou forte impressão. Inclusive em Cartola, de quem Paulo César se aproximou humilde, cheio de cerimônia. O encontro dos dois é historicamente significativo, verdadeira passagem de bastão, sem que no entanto se tivesse consciência disso. Muito do que Paulo César estava por fazer – manter a tradição, sem maculá-la, requintar o samba sem deformá-lo – Cartola já vinha fazendo. Não fossem ambos tão tímidos, tão reservados, e seria inevitável se tornarem parceiros. Mas Zé Kéti também se encantou com o som do violão de Paulo César, sua musicalidade, sua voz terna, afinada, que combinava o timbre de autêntico sambista de escola com a técnica precisa de crooner profissional. O diretor musical do restaurante logo anteviu
 no moço de 20 anos um novo bamba. Copmentou isso com o jornalista Sérgio Cabral, que na época assinava, com José Ramos Tinhorão, uma seção de música popular no Jornal do Brasil e era mestre de cerimônias no Zicartola. Sérgio concordava. Mas achava que, definitivamente, Paulo César não era nome de sambista.
– Que tal Paulo da Viola? – indagou Zé Kéti, certamente inspirado em Mano Décio da Viola, veterano compositor do Império Serrano.
– Paulinho... Paulinho da Viola é melhor – completou Sérgio.
E assim Paulo César Baptista de Faria foi rebatizado para todo o sempre.” 

O vídeo é Clementina de Jesus, no Zicartola cantando "Ensaboa". 
Ai, ai que tivéssemos um lugar aqui em Buraco onde fosse realmente legal ir, tomar umas cervejas, ouvir umas músicas legais, conversar com pessoas queridas, etc.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Ciências x Humanidades

Alimento o pesadelo de que, em alguns anos, os aviões não decolarão, mas todos nós seremos muito elegantes.
...mas é o caso de perguntar por que somente a arte teria poderes civilizatórios.
Sem desmerecer os excelentes alunos de cinema, letras ou sociologia, é impossível negar que, para alguém sem grande talento ou dedicação, será sempre mais fácil ser medíocre num curso de humanas do que num de exatas.

Todas as citações são do documentarista João Moreira Salles retiradas de um texto publicado na última edição de domingo do jornal Folha de São Paulo, no caderno Ilustríssima.


Li o artigo uma única vez. No computador da Bicen.

(...)

O texto aqui

domingo, 30 de maio de 2010

Hilda Hilst










Gente! Estou imparável hoje com essas (minhas) mulheres.

Ando mesmo querendo repensar o uso de pronomes possessivos nas falas que divido comigo mesma e com os outros. Mas, uma dificuldade: a Literatura. Os livros, as personagens, as escritoras (e os escritores) que amo, que me rodeiam. Eu acabo feito criança que diz que tudo é seu. Assim tendo a escrever/falar: minhas escritoras, meus lviros, meus textos...Valei-me senhor são brás dos egoísmos inocentes e sem intenção de o ser!

Eis uma das minhas escritoras prediletas. Gurua de minha vida!

E.G.E. (ESQUADRÃO GERIÁTRICO DE EXTERMÍNIO) - Hilda Hilst

(Segunda-feira, 3 de maio de 1993)

O poeta pode ser violento. A maior parte das vezes contra si mesmo. Um tiro no peito, gás, veneno, um tiro na boca, como fez Hemingway, que também foi poeta em O Velho e o Mar; Maiakóvski, um tiro no peito; Sylvia Plath, gás de cozinha; Ana Cristina César, um salto pelos ares; etc etc etc. "Os delicados preferem morrer", dizia Drummond. Mas esta modesta articulista, sobretudo poeta, diante das denúncias feitas pela revista Veja, todos aqueles poços perfurados em prol de uma única pessoa ou em prol de amiguelhos de sua excelência, presidente da Câmara, senhor Inocêncio (a indústria da seca), e o outro com seu lindo carro às custas de gaze e esparadrapo... Credo, gente, quando você vê televisão ou in loco o povão famélico, desdentado, mirrado... Um amigo meu foi para o Ceará e passou os dias chorando! As crianças todas tortas, todos pedindo comida sem parar... e 500 toneladas de farinha apodrecendo... e montes de feijão desviados para uma só pessoa... (um parênteses, porque meu coração de poeta pede a forca, o fuzilamento, cadeia, cadeia para aqueles que se locupletam à custa da miséria absoluta, da dor, da doença). Gente, eu já estou uma fúria e para ficar mais calma proponho algumas coisas mais sutis, por exemplo: o Esquadrão Geriátrico de Extermínio, a sigla óbvia seria EGE. Arregimentaríamos várias senhoras da terceira idade, eu inclusive, lógico, e com nossas bengalinhas em ponta, uma ponta-estilete besuntada de curare (alguns jovens recrutas amigos viajariam até os Txucarramãe ou os Kranhacarore para consegui-lo) nos comícios, nos palanques, nas Câmaras, no Senado, espetaríamos as perniciosas nádegas ou o distinto buraco malcheiroso desses vilões, nós, velhinhas misturadas às massas, e assim ninguém nos notaria, como ninguém nunca nota a velhice. Nossas vidas ficariam dilatadas de significado, ó que beleza espetar bundões assassinos, nós faceiras matadoras de monstros!

O curare é altamente eficiente, provoca rapidinho a paralisia completa de todos os músculos transversais (bunda é transversal?) e em seguidinha sobrevém a morte por parada respiratória. Ficaríamos todas ao redor do coitadinho, abanando: óóóó, morreu é? Um pedido ao presidente Itamar: severidade, excelência, é ignominioso, indigno, insultante para todos nós, deste pobre Brasil tão saqueado, que essas terríveis denúncias terminem no vazio, no nada, na impunidade. É sobretudo perigoso porque:

de cima do palanque

de cima da alta poltrona estofada

de cima da rampa

olhar de cima

LÍDERES, o povo

Não é paisagem

Nem mansa geografia

Para a voragem

Do vosso olho.

POVO, POLVO

UM DIA.

O povo não é o rio

De mínimas águas

Sempre iguais.

Mais fundo, mais além

E por onde navegais

Uma nova canção

De um novo mundo.

E sem sorrir

Vos digo:

O povo não é

Esse pretenso ovo

Que fingis alisar,

Essa superfície

Que jamais castiga

Vossos dedos furtivos.

POVO. POLVO.

LÚCIDA VIGÍLIA.

UM DIA.