Mostrando postagens com marcador sociedade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador sociedade. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Copa sim, despejo não! ou Eu não sou daqui...

"...Porém, porque peço silêncio não creiam que vou morrer. Passa comigo o contrário, sucede que vou viver. Sucede que sou e que sigo. (...) Sucede que tanto vivi, que quero viver outro tanto. Nunca me senti tão sonoro, nunca tive tantos beijos. Agora, como sempre, é cedo. Voa a luz com suas abelhas. Me deixem só com o dia. Peço licença para nascer." ... (Pablo Neruda)

Já estou em Mariana/Ouro Preto desde o final de semana. Ouro Preto é uma cidade mágica. Suas ladeiras, seus morros, as casinhas, o verde, as cores (as muitas flores, todas tão lindas, oh, Deus, das mais vagabundinhas e pequerruchas de beira de caminhos às mais raras), as ruas que me lembram canções de ninar (ouço tanto em meus ouvidos quando por lá caminho aquela sempre canção...se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes para o meu, para o meu amor passar...). Enfim, gosto das bandas de cá. E gosto dessa coisa de interior, de as pessoas serem solícitas como foi uma senhora chamada Vera que encontrei na rodoviária de Ouro Preto: me ajudou com as bagagens, conversou conversa mole comigo, me deu boas-vindas e disse onde morava para, no caso de eu me demorar por aqui, ir visitá-la. E o motorista do ônibus que, sem pressa, me deixou colocar as malas na frente, aguardou eu entrar e pagar e me sentar, para então colocar o carro em marcha...
Mas, vou viver essas cidades em seu dia-a-dia para ver o que rola, para sentir suas instabilidades, suas lutas diárias e aí sim falar mais sobre.
Digo tudo isso porque passei uma semana em BH e quando, ontem, me perguntaram o que achei de BH eu tinha respondido que gosto do clima meio cidade grande e meio interior que BH transpira. E falei a verdade. Lá é isso mesmo para mim.
Mas, quando fui dormir, sob um frio quase insuportável (já aqui em Mariana), vestida em duas calças, duas meias, com luvas, e quatro camisas (dois casacos, uma normal e outra de manga comprida) e ainda assim tremendo de frio. Ok, esquecemos eu e Maria uma janela aberta e isso foi o suficiente para eu imaginar que morreria congelada e a pensar como estariam as pessoas que não têm casa e que mesmo em albergues quase nunca estão suficientemente protegidas - esse pensamento não veio de um  sentimento de caridade cristã, mas de uma constatação política: eu passara, na semana anterior, todos os dias pela Vila Recanto UFMG, localizada na Av. Antonio Carlos. Nessa avenida, nessa vila, famílias e famílias estão sendo despejadas por conta das reformas das cidades que sediarão a Copa das Confederações em 2013 e a Copa do Mundo em 2014.
Eu cortava caminho justamente pela vila já sendo demolida. Restos de vidas ali entre montes de pedras, muita areia e transeuntes (geralmente universitários). Nas paredes, algumas pichações de reivindicação por justiça (ao menos nas indenizações).
Chamou a minha atenção repetidas vezes ter encontrado no fim da tarde uma moça jovem, sempre sentada numa cadeira quebrada (sem o encosto) com o olhar triste ou perdido, no meio de escombros. Pensei em fotografar todos os dias o ambiente que me parecia cada vez mais desolado, destruído, em ruínas. Porém, quando vi crianças (muitas) correndo, brincando, suas bonecas expostas na terra... Entendi que era invasão demais fotografar aquilo. Já era invasivo demais eu cortar caminho por ali, ver aquilo tudo e nada fazer...Presenciar as mudanças impostas e injustas das paisagens, das histórias, das memórias das pessoas...
As imagens foram fotografadas por minha cabeça que a tudo rememorou na noite de tanto frio de ontem. Pensei na moça sentada esperando sabe-se lá o que, nas crianças com suas bonecas quebradas e sujas de terra. Da terra que restava de suas casas. E me senti filha-da-puta, despolitizada, inerte... E pensando que enquanto estivermos gritando, torcendo pelo Brasil  em qualquer partida de jogo da copa em 2014, aquela menina da boneca de terra também estará talvez junto à moça da cadeira que, por ver o Brasil ganhando ou perdendo, estará, quem sabe, menos desolada que nessa semana que passou.
Esquecidos todos nós do lema Copa sim, despejo não!

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Vigiar e punir ou "das posições"


Toda a instituição parapenal, que é feita para não ser prisão, culmina na cela em cujos muros está escrito em letras negras: ”Deus o vê”.(Michel Foucault, Vigiar e Punir, pg. 242).

No terceiro capítulo de Vigiar e Punir, intitulado “O cárcere”, Foucault elege Mettray (lugar onde jovens delinqüentes ficavam depois de serem condenados nos tribunais) para fixar o que completaria a formação do sistema carcerário. Ao se perguntar pq Mettray ele responde que é porque “é a forma disciplinar no estado mais intenso, o modelo em que concentram todas as tecnologias coercitivas do comportamento”. E mais adiante ele nos diz como é feita a divisão em grupos e diz que “os chefes e subchefes em Mettray não devem ser exatamente nem juízes, nem professores, nem contramestres, nem suboficiais, nem “pais”, mas, um pouco de tudo isso e num modo de intervenção que é específico. São de certo modo técnicos do comportamento: engenheiros da conduta, ortopedistas da individualidades. Têm que fabricar corpos ao mesmo tempo dóceis e capazes”. E depois ele vai nos falando como se comportavam os homens da direção, os chefes e subchefes, como se vestiam (“tão humildes” quanto os internos), como estavam sempre próximos, vigiando-os (aos internos) dia e noite. Criavam uma rede de observação permanente. Etc.
Ontem, eu voltava para casa, e pensei: “Há os que vigiam e punem se algo sair das normas. Mas, estes (que vigiam e punem) não estão livres de serem vigiados e punidos, caso algo saia das normas”. E lembrei-me também do filme Saló de Pasolini e da rede de observação permanente que ali acontece, naquele casarão. E de como há um momento onde um sai “entregando” o outro para livrar-se das punições cada vez mais severas...
Essa tal rede (de observação permanente) é tecida e posta em prática até hoje: nos sistemas penais, em “casas de recuperação”, nos sistemas parapenais (ave as escolas (muito mais para os professores, até, pois, lembro-me de já ter postado aqui uma matéria que falava sobre a criação de quartos escuros para castigar professores)!) e em toda a parte, por vezes “disfarçados” de distração...

P.S.: devo explicar que essas coisas todas se passaram em minha cabeça porque eu estava sendo fiscal no vestibular ontem, o próprio sistema de fiscalização se dá assim: os fiscais vigiam os candidatos e os supervisores vigiam os que vigiam os candidatos. Além do que muitas vezes o ambiente escolar me lembra essa criação de “corpos dóceis e capazes” e ainda, andar em ônibus lotado de pessoas que nunca vi, voltando para casa, com calor, sono e cansaço e olhando uma placa que nos informa que para nossa segurança estamos sendo filmados, nos faz pensar coisas...

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Da coisa pública

Meu celular está quebrado. Não ouço as pessoas, apesar de elas me ouvirem muito bem quando me ligam ou quando eu ligo para elas.
E entre ontem e hoje eu precisava urgentemente resolver um assunto que não é simples. Envolve muitas outras coisas. Sentimentos. Os dias têm sido difíceis há tempos por conta disso. É tocar numa ferida que não se fechou ainda.O processo de transportar os ossos de minha mãe do cemitério daqui para o cemitério da cidade de Propriá é um assunto que fragiliza e me coloca diante de um mundo duro, que se importa apenas com dinheiro e onde questões de vida e de morte viram meros comércios.

O fato é que entre ontem e hoje precisei usar o telefone para falar com taxista para fretar carro, para falar com as pessoas responsáveis pelos dois cemitérios das duas cidades. E tudo isso em frangalhos, mas tendo que ficar forte, pois deve-se engolir os choros para falar com essas pessoas...Afinal de contas, é o dia-a-dia delas e elas não compreendem muito bem.

Não tendo telefone fixo, precisava de orelhões. E eis que começaram os martírios adicionais. Em quase todos os orelhões que fui, no centro da cidade, quase nenhum deles funcionava. Depredação total.
A cada tentativa, eu me sentia mais desamparada. A sensação era essa. Desamparo. Enfim, consegui resolver depois de oito tentativas.
Quando entrei no ônibus para voltar para casa, notei chicletes no lugar onde as pessoas se apóiam, na barra onde os passageiros colocam as mãos. Imaginei o quanto deve ter parecido divertido ou "coisa de gente revoltada" para quem fez aquilo.
As pessoas já não se incomodam com as outras há tempos. Mas, o processo já tem ficado acéfalo. Orelhões públicos, barras de ônibus são coisas que todos nós usamos. Inclusive as pessoas que depredam podem precisar um dia, uma noite, numa ocasião qualquer. Ainda que isso possa parecer difícil de acontecer para elas.
Mas, o sentimento de ser super-homem, super-mulher, super-humano tem sido cada vez mais forte. O que fazer? Enquanto as dores forem de cada um e pronto, será sempre assim. Processo crescente de acefalia, depois de um já conretizado processo de petrificação do coração...

Saber


Sabia que se o pegasse naquela esquina o partiria em dois
Cortou caminho
Era cedo para polemizar população tão pequena
Casou-se com linda mulher, fez-lhe filhos grandes, bonitos
Mas, nunca deixou de saber que se encontrasse com aquele na esquina,
O partiria em dois.
Porém, o que cortava sempre era mesmo o caminho.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Nota

Já encontrei os livros que queria. Inclusive e especialmente o da Ecléa Bosi. Todos os exemplares estão intactos.
O modem já voltou da "manutenção" e, portanto, já tem Internet na Bicen.
Mais, calma, percorri, com os números das chamadas devidamente anotados, e muita atenção, as prateleiras.
Dará para sobreviver, sim. Havia o susto, o impacto das trocas de lugares, do alvoroço de pessoas a procurar livros, etc. Mas, não foi tanto exagero meu observar as coisas observadas do post anterior.
E, seria legal deixar claro que assim que deparei com as portas fechadas da bicen, procurei conversar com um bibliotecário, uma pessoa super gentil e acessível, que me recebeu muito bem e me explicou algumas coisas sobre o funcionamento, na verdade, sobre as dificuldades de funcionamento da Bicen na UFS,  e sobre o ocorrido, etc. Não vou citar nomes publicamente, mas é só para marcar que procurei informações e fui fazer a minha reclamação "meio oficial". Isso é para me proteger de pensamentos apressados sobre a minha fala de que "só aqui para uma biblioteca fechar durante um mês, reeabrir, sem explicação alguma...".
Mas, já estou fichando o livro.
Já está tudo se encaminhando...
Mas, o silenciamento de todos juntos, continua a me incomodar... Ao menos numa questão como a da Bicen.

Bicen

Acabei de percorrer toda a Bicen. Reabriram-na hoje, depois de um mês ou mais de portas fechadas, sem grandes e claras explicações. Soubemos, à boca miúda, que a causa de fechamento, assim que retornamos às aulas, fora uma chuva e a consequente perda de alguns exemplares...
Depois de uma longa espera, desabrigados em relação ao espaço que é uma biblioteca para uma Universidade e, especial e drasticamente, sem acesso aos livros, a Bicen reabre.
Tamanho foi o meu susto, ao percorrer as prateleiras de livros. Não percebi reforma alguma, muito pelo contrário, ainda vi muitos baldes para aparar água de prováveis chuvas ou de ar-condicionados. Percebi ainda as feias lonas pretas cobrindo algumas prateleiras.
Mas, entre tantas coisas ruins, busquei desesperadamente o livro da Ecléa Bosi e não o encontrei.
O pior quanto à desarrumação: as referências (chamadas dos livros) estão misturadas. Não respeitaram uma memória espacial e a consequência foi ver alunos, aos montes, desorganizadamente, procurando livros que estavam distribuidos de maneira aleatória no que diz respeito aos números de chamadas e à posição: livros deitados, livros em pé. E isso não é frescura ou uma questão estética: tem a ver com a conservação dos livros. Pois os manuseamos com muita frequência na Bicen...

Enfim, liguei, desesperada e revoltada, para Jadson. Gritava ao telefone, não para ele, mas, para as pessoas que estavam perto. Fiquei mais calma e vim escrever.

Continuo achando que só aqui mesmo para aguentarmos um mês de biblioteca fechada, sem explicações e uma reabertura dessa maneira.
Soube, da mesma forma que se sabe das coisas aqui: à boca miúda, que houve uma perda de 20% dos exemplares.
Percebi um défict, mas, não posso afirmar que seja esse o montante. Mas, de qualquer forma, deveríamos ser avisados do que realmente aconteceu.

Bem, no mais, de maneira irada e desorganizada, fica minha raiva mais amena ao falar sobre. Querendo ser otimista...

domingo, 29 de agosto de 2010

Identidade, autoridade e liberdade - o potentado e o viajante


Identidade, autoridade e liberdade - o potentado e o viajante é o nome de um dos textos do Edward Said que está no livro Reflexões sobre o exílio e outros ensaios.
Said refletia sobre o que falar numa determinada palestra quando encontrou-se com um colega ao qual pediu sugestões. O colega, então, perguntou-lhe o nome da palestra e ele respondeu que era Identidade, autoridade e liberdade. E o amigo disse-lhe: "Interessante. Você quer dizer que identidade é o corpo docente, autoridade são os administradores e liberdade…"Liberdade", disse ele, "é a aposentadoria".
Comentário não só chistoso, mas cínico, mas que apesar da irreverência, reflete sobre a questão da liberdade acadêmica.
Todo o texto vai versar, partindo de um ponto de vista bastante afetado pela situação da Palestina, com a qual Said se identifica por origem e por escolha e, dessa maneira, defende, sobre a Universidade, sobre a liberdade acadêmica.
Gostei muito de muitas passagens do texto. Posso dizer, de maneira menos hermética, que gostei do texto.
Especialmente me fez lembrar sobre os papéis que desempenhamos como estudantes mesmo, e me fez lembrar até do último post que li de Wesley sobre o Dumbo, sobre sua participação e insistência e esperança de servir para alguma coisa essa sua perseverança em exibir filmes na Universidade, mesmo ouvindo vez por outra, ou mesmo quase sempre, coisas absurdas que vão de filmes, gosto à concepções do que vem a ser infantil, leia-se, de como se concebe o que é uma criança.
A uma altura do texto, Said escreve que "Dizer que alguém estuda ou leciona é dizer que tem a ver com a mente, com valores intelectuais e morais, com um determinado processo de investigação, discussão e troca, atividades habitualmente não muito praticadas fora da academia".
Eu acho que esse trecho, mesmo assim deslocado, desapertado do inteiro do texto do Said, responde um pouco do que acho que deveria ser a academia.
_______________

Lendo-o pela terceira vez (e não vou ficar colocando passagens do texto aqui para não ficar algo muito acadêmico ou mesmo enfadonho), fiz muitas viagens pensando em outros textos. Lembrei-me de Clifford Gertz em Interpretações da Cultura, no texto Rinha de galos em Bali. Eu o havia lido e, recentemente, alguém o comentou ligeiramente e me fez rememorá-lo. Gertz diz em seu texto da dificuldade de colher depoimentos das pessoas envolvidas na rinha e que só os conseguiu quando a polícia chegou na área, todos correram e ele, por medo ou por intuição, correu junto. Daí, na próxima investida, o estudioso ouviu: "Vamos falar, pois você é um dos nossos".
Essa passagem do Gertz rememorada um santinho antes de meu contato com esse texto do Said me fez pensar em como o ambiente acadêmico é representado no imaginário de pessoas que não o freqüentam e até mesmo de nós que o freqüentamos.

Mais adiante, vejo escrito no texto de Said, esse fragmento: "Nenhum de nós pode negar o sentimento de privilégio levado para dentro do santuário acadêmico". Antes de falar sobre a questão do privilégio, me fez dar outra viajada a expressão santuário acadêmico. Viajei para o texto de Virginia Woolf: Um teto todo seu.
Lembrei-me da descrição irônica, irresistível do começo de seu texto. Virginia conta-nos de sua primeira inspiração (na verdade de como a sua primeira idéia fora cortada) para escrever a palestra que irá proferir sobre "A mulher e a ficção". Ela está tentando explicar como deveria construir um argumento para desenvolver a idéia de que a mulher, para escrever ficção, precisa ter dinheiro e um teto todo dela.
Virginia é acometida pelo "puxão"da idéia nascendo, à beira do rio (por esse motivo ela vai usar a metáfora do peixe pequeno para a idéia nascendo ainda). Assim que sente a inspiração para o desenrolar das idéias nascer, ela se levanta e se põe a caminhar. Logo, vê-se na grama, andando para um lado e para o outro. E, sente o primeiro embargo: Um bedel a interrompe. Ali só pode estar Estudantes. O lugar dela é no cascalho.
Ok. Ela acha que andar na grama é mais confortável que andar no cascalho, mas continua a andar, no cascalho e põe-se a pensar mais e mais porque perdera o fio da meada, ou como a mesma diz, perdera o seu peixinho (pois Virginia usa a metáfora do peixe pequeno para a primeira idéia nascente).
Lembra-se de referências bibliográfica e, lembra-se, de que pode consultá-las na biblioteca da Universidade de Oxbridge. Santuário que guarda tesouros como os que agora aparecem em seu pensamento.
Sobre as escadas, envolta em pensamentos mil que vai nos citando… Até que, pela segunda vez, é barrada. Agora, ouve que as damas só eram admitidas na biblioteca da faculdade acompanhadas por um Fellow (estudantes que tinham privilégios, que já haviam terminado os cursos, mas tinham ligação com a instituição, tipo pós-graduados) da faculdade ou providas de uma carta de apresentação.
Virginia se afasta, dessa vez possessa. Pensa em o que fará para o resto do dia. E a uma certa altura, encosta-se a um muro, de onde enxerga a universidade e nos diz: "Quando me encostei no muro, a universidade pareceu-me de fato um santuário onde se preservavam tipos raros, que logo se tornariam obsoletos se deixados a lutar pela existência nas calçadas do Strand".

Porque fiz tantas viagens para pensar e falar num só texto como o do Edward Said? Talvez não seja porque sou louca não. O subtítulo do próprio texto é o potentado e o viajante. Por todo o texto, então, perpassa a idéia de que não podemos justificar nosso anseio por justiça se defendemos apenas o conhecimento nosso e de nós mesmos. Portanto, nos diz Said que "o modelo de liberdade acadêmica deve ser o migrante ou o viajante, pois se no mundo real, fora do universo acadêmico, precisamos ser nós mesmos e apenas isso, dentro da academia precisamos ser capazes de descobrir e viajar entre outros eus, outras identidades, outras variedades da aventura humana. Mas - o que é mais essencial -, nessa descoberta conjunta do eu e do Outro, o papel da academia é transformar o que poderia ser conflito, disputa ou asseveração em reconciliação, reciprocidade, reconhecimento e interação criativa".

Claro que não estamos mais no tempo em que mulheres e negros não entravam nas universidades. Mas, não é demais reavivar um texto assim como o de Woolf. Não é demais reavivar lembranças traumáticas como a Shoah, o Apartheid, o que foram as ditaduras militares na América Latina, enfim, nunca é demais lembrar erros cometidos no passado. Até mesmo para não repetirmos esses mesmos erros no presente ou no futuro.

E o Outro de hoje, pode não ser a mulher, mas existem muitos Outros ainda. E a academia é um lugar para adotarmos espaço para pensar sobre a questão. Com liberdade. Adotando o ponto de vista de um viajante. Que muda a rota, que mesmo com mapa, se perde, conhece, observa, interage, pergunta, aprende na carne.

São questões a se pensar. Sobre o Outro. Sobre o cânone. Sobre o que se estuda e como se estuda. O que se aborda. E daí é tão importante nos perguntarmos: E criança não pensa?
Diziam isso dos índios os portugueses quando aqui chegaram. Diziam, esses mesmos portugueses, dos negros que não tinham alma.
Dizem das mulheres que pensam menos que os homens.

É bom viajar. Nos textos. Nas idéias. E construir junto com os outros passageiros da viagem que é optar por estar nesse ambiente que é a academia.

sábado, 28 de agosto de 2010

Memória e subjetividade amorosa


"Uma memória coletiva se desenvolve a partir de laços de convivência familiares, escolares, profissionais. Ela entretém a memória de seus membros, que acrescenta, unifica, diferencia, corrige e passa a limpo. Vivendo no interior de um grupo, sofre as vicissitudes da evolução de seus membros e depende de sua interação. Quando sentimos necessidade de guardar os traços de um amigo desaparecido, recolhemos seus vestígios a partir do que guardamos dele e dos depoimentos dos que o conheceram. O grupo de colegas mal pode constituir um apoio para sua lembrança, pois se dispersou e cada um se integrou num meio diverso daquele que conheceu. Como salvar sua lembrança senão escrevendo sobre ele, fixando assim seus traços cada vez mais fugidios?" (Ecléa Bosi, in: Memória e Sociedade - Lembranças de velhos)

Impossível para mim reler esse livro da Ecléa Bosi e não fazer, a cada releitura, uma releitura de mim mesma com a minha mãe, com a minha infância, com o meu passado, com os espaços os quais já percorri e, portanto, com o meu presente.
Não temo dizer que meu principal objetivo ao trabalhar com a temática da memória no mestrado seja o de nunca esquecer. Seja o de estar sempre perto de minha mãe.
É como se eu tivesse um dever de memória, precisasse criar um lugar de memória, para falar nos termos de Pierre Nora.
E não há dúvida de que identidade e memória tem muito a ver um com o outro. E ao estudar memória, acabo constituindo uma noção grande de identidade. Acabo pensando coisas sobre mim e sobre ela (a minha mãe) e sobre o lugar que nos abrigou por quase toda a minha vida que foi a cidade de Propriá e sobre Aracaju essa cidade sempre presente também em nossas vidas. E assim, talvez me confunda mais e melhor sobre o que seja eu. Sobre o que foi ela. Sobre o que é que fui eu. Sobre quem é ela.
Outro dia estava eu a ler um livro escrito por Todorov chamado O homem desenraizado. Ele começa esse seu livro falando sobre a experiência que viveu ao viajar para ministrar uma palestra na Bulgária. A Bulgária é o seu país de origem. E ele retornou, depois de um exílio "circunstancial", como o próprio diz ter sido o seu, uma vez que não foi convidado a sair de seu país por motivos nem políticos (diretamente) nem econômicos ou de qualquer outra ordem. Foi uma opção. E ele não optara ingenuamente por deixar deixar uma terra "marginal"(em se pensando que Paris, lugar para onde foi, era, à época o "império" ou lugar onde outros lugares estariam em sua órbita). Ele foi estudar e lá ficou. Mas, é verdade que nunca concordou com a política governamental desenvolvida em seu país.
Depois de 18 anos fora de seu lugar de origem, distante lingüística e emocionalmente de seu lugar de origem, ele se viu em Sófia. Em sua casa. Reencontrando a mãe, amigos e até seus sapatos de jardinagem que sabia que eram seus pois que ainda guardavam os mesmos vícios de seus pés, as mesmas marcas.
Mas, antes, anos antes, Todorov nos conta que sonhava um sonho recorrente. Sonhava que visitava seu lugar de origem e, quando estava prestes a voltar à França, ia para estação de trem e de lá não conseguia sair. As situações nos sonhos eram muitas e variadas. Vezes havia esquecido a passagem em casa e se voltasse perderia o trem, outras ele entrava na estação, mas ao atravessá-la nada via que não fosse mato, outras ainda, estava de carona com um amigo que pegava um atalho e se perdia e chegavam atrasados à estação.
Ele estava impossibilitado de voltar à sua terra eleita, a França. E isso o apavorava.
Era um sonho. E quando se viu prestes a viajar de verdade para esse mesmo lugar dos sonhos e que era o de sua origem, ele tratou de prevenir possíveis não-voltas. Casou-se com a companheira de anos, escreveu a amigos que mantinham contato com a imprensa todos os dados de onde estaria e o que iria fazer lá, enfim, precauções que nos parecem absurdas ao lermos seu texto, mas que não são tão absurdas assim se lembrarmos que a Sófia vivia um regime autoritário comunista e que não seria tão absurdo acontecer-lhe algo.
Uma vez em Sófia, Todorov vive um processo estranho e dominante de reflexão quanto à sua identidade. Ele sente como se fosse um personagem duplo. Oras ele é o personagem búlgaro, outras ele é o personagem francês.Tudo o que se passava em seu interior, antes, com tranqüilidade, sem violência, todo o processo de desculturação, aculturação e de transculturação já vivenciados e já "superados", tudo veio à tona quando este se viu na Bulgária.
Foi preciso temer perder uma identidade escolhida, foi vivendo o embate junto aos que ficaram, foi se perguntando o que seria ele se ele não tivesse saído, foi pensando em tantas coisas que ele chegou a compreender que as identidades culturais não são apenas nacionais, existem outras ligadas aos grupos pela idade, pelo sexo, pela profissão, pelo meio social. Foi vivendo certas coisas na carne, como se de repente tivesse que não agir de maneira simples, mas sim ligando e desligando tomadas de si mesmo: a tomada búlgara, a tomada francesa, a tomada de ser filho, a tomada de ser amigo, a tomada de ser um intelectual que ia proferir uma palestra num país onde era estrangeiro e pertencente ao mesmo tempo, a tomada de ser isso ou aquilo. Entendeu, então, que em nossos dias todos já vivemos, ainda que em níveis diferentes, este reencontro de culturas no interior de nós mesmos.
E ao ler Todorov testemunhando um processo de identidade e de memória, eu lembrei de um conto de Luis Borges, que está em O livro de areia, chamado O outro. Nesse conto, Borges velho encontra-se com Borges jovem. Não são o mesmo. É seu duplo. Apesar de ser o mesmo Borges em tempos diversos, são pessoas diferentes. Vale a pena ler o conto. Por que agora estou já cansada de tanto fluxo de pensamento. De tanto sentir entrecortado. Já falei demais. E tudo isso para dizer que morro de saudades e que encontrei um jeito sim de ficar mais perto de minha mãe. E está aqui na memória, em cada coisa que escrevo, que relembro, que monto de novo. Mergulho. Superfície. Tudo ao mesmo tempo.
E tudo isso me ajuda a deixar de ser preconceituosa. A tentar compreender que se eu sou construção, também ela foi para ela mesma e para mim e continua a ser. Assim como qualquer outra pessoa. Assim como acontece com todo mundo.
Mas, ser construção não significa deixar de ser verdade.
E se um mesmo homem não mergulha num mesmo rio porque ambos, homem e rio, já não são o mesmo, como querer de mim ou dela ou de qualquer pessoa que seja algo estático?
E eu não falo aqui de hipermodernidade, de pós-modernidade, de tudo líquido.
Falo de possíveis e prováveis preconceitos mesmo. De como a gente encara uma mãe, uma mulher.
Minha mãe era uma mulher inquieta. Buscava coisas (e aqui coisas não é só o que de material possa existir, mas sim também idéias, sentires, etc.). Era inconformada com muito do que viveu, do que vivia. E isso é o que foi mais marcante dela para mim.
Isso estava em sua voz, grossa, rouca, de gritar para a vida. Seus grandes olhos verdes. Sua postura ereta. Ela era alta. E dizia ter só tamanho. Pois que se via como uma manteiga derretida. Isso estava em suas memórias, no que ela lembrava dos anos 60, de como rememorava o golpe de 64, ela com 20 anos de idade. Como ela reconstruía as ruas de Prporiá, a festa de Bom Jesus, o Cine Veneza, alguns tantos acontecimentos políticos. Como ela me explicava os nomes das ruas ou de como as ruas eram conhecidas.
Eu a amava e a temia (não só porque ela era a minha mãe, mas porque ela sabia assustar quando ficava brava). Respeitava. E falávamos de tudo. E éramos verdadeiramente amigas. Mesmo que vez ou outra ela dissesse: "Ei, mocinha, a mãe aqui sou eu, viu?". Ela era muito conversadeira (era assim mesmo que falávamos rindo quando varávamos a noite conversando: hoje estou conversadeira, estou com o conversador aberto).
Ela era intensa e como pessoa intensa não vivia as coisas por oportunismo ou de maneira reducionista.
Amava. E por amor sofreu.
Fumava. Parou um mês antes da morte. Parou porque estava doente e não podia mais. Mas, o cigarro era o seu companheiro. Daquelas tantas horas de insônia e que eu estava dormindo. E daqueles momentos que todos nós temos: aqueles que a gente não deixa ninguém penetrar, por mais que a gente ame muito, sabe?
Ela era assim e muito mais. Porque ela era gente. Gente  muito gente. E, como disse Clarice Lispector, para além de gente ela era uma Pessoa. Assim com maiúscula.
Ela era uma Pessoa. Tinha suas máscaras, seus sonhos, seus silêncios, suas brigas, suas opiniões, sua voz. Suas escolhas, suas dúvidas. Suas contradições. Era, enfim, uma Pessoa.
Amava música, livros, cinema. Falava sempre de tudo o que via, lia, assistia. E adorava pessoas e solidão. E era bonita, vaidosa. Era crítica, nada falava ou pensava sem fazer reflexões sobre.
Depois, adoeceu. Encucou com muita coisa. Na verdade com uma coisa. Desprezou o seu corpo. Mas, ela era tão e tanto, que mesmo depressiva, que mesmo doendo sempre, que mesmo com câncer, que mesmo sentindo dores recorrentemente, mesmo assim ela era encantadora. E, antes e depois, se permitia. Era uma Pessoa.
E eu morrerei se me esquecer de como foi especial, diferente, importante, feliz ter nascido dela, ter sido criada por ela, ter vivido tudo o que vivi com ela.
Tudo o que eu disser sempre vai ficar aquém. Pois é indizível ter tido a oportunidade de ter vivido ao lado dela.  De ter experimentado o que experimentamos.
Por isso pessoas como Kelli, como Suyanne, como Deise, como mesmo Tiago, como Delaninho, como Gustavo, com Cândida, como Silvinha, Dênia, Lísia, como todos os meus amigos (tantos, tantos, tantos que se eu for citar vou escrever eternamente) que a conheceram são tão importantes também como figuras que conviveram com ela meio que para testemunhar uma época, um fato, uma pessoa, um acontecimento. Que cantaram na cozinha lá de casa, que riram, que choraram, que ouviram-na tanto com sempre suas muitas histórias, que falaram, desabafaram (porque muitos de meus amigos falavam das coisas, conversavam mais com ela do que comigo sobre amores, dúvidas, medos, incertezas). Ela sabia ouvir como ninguém.
Era controversa. Chegando a ser engraçado. Lembro-me de que um dia, quisemos descobrir porque ela juntava a gente em casa, conversávamos cantávamos, bebíamos muito café, comíamos uma coisinha ou outra (porque ela adorava cozinhar e adorava que as pessoas gostassem das comidas que ela fazia ou mesmo, ela era toda jeitosa, cortava queijo, colocava azeitonas, um patê, biscoitinhos num prato e refrigerante a vista, copos para quem quisesse se servir…sempre tinha que oferecer algo, mas sem a insistência chata, era sempre como se partisse de nossa vontade e como ela sabia respeitar os outros!) e de repente, todos nós decidíamos ir embora, deixar para continuarmos os papos e a cantoria amanhã, mas isso sempre coincidia com o cansaço dela. Ela juntava a gente sem que a gente percebesse e desfazia o ajuntamento sem que a gente percebesse também. Era ao bel-prazer dela, a danada. Ela sempre charmosa, cheia de conversa mole. E a gente caindo, caindo.
Quando digo que era gente, Pessoa, é que ela mudava de humor, ficava triste, zangada, não queria ver ninguém, depois voltava toda alegre, eufórica, e isso nem sempre era assim tão evidenciado ou tão antagônico e demarcado, era um cotidiano, um dia-a-dia, mas ela driblava isso com uma beleza simples (se bem que outras tantas sofisticadas).
Pintava quadros, panos, toalhas, bordava, coloria as coisas, dava um outro tom. Lembro-me de ela ter pego uma toalha de renda toda branca e tê-la pintado. Pintou flor por flor. Ainda guardo a tal toalha, inclusive ainda a uso. Ficou um trabalho ímpar. Belo. E ela feliz, orgulhosa, mas,  muito sinceramente soltou: "Essa vai ser a única, pois estou com os olhos arrombados, ô gota!". Era assim. Espontânea. E desarrumava as coisas para rearrumá-las com graça, com arte, com beleza.
Adorava Augusto dos Anjos e o Castro Alves sensual. Citava-os sempre. E vivia lembrando de que o beijo era a véspera do escarro.
Claro que de uma personalidade como a dela eu só posso morrer de falta.
Não era submissa, não passava desapercebida nunca. E me ensinou que a amar e ser amado não significa subjugar a outra pessoa nem estar subjugada.
Não era utilitarista. Não puxava saco. Apesar de ser carinhosíssima e muito compreensiva. Tinha um olho de lince. Sabia viver.
Não olhava para trás quando andava e dizia que se alguém a chamasse pelo segundo nome, nunca acharia que era com ela.
Falava do tempo em que seu pai era gerente de um grande cinema em Propriá com tamanha paixão que me apaixonava também pelas suas histórias. E acho que acabei testemunhando um tempo que não o meu. Como é viva a imagem de um homem que perdera a mãe, foi ao cinema, assistiu a um rama, riu a sessão todinha e, quando todos foram embora, chorou copiosa e dolorosamente, sozinho, emborcado, caído da cadeira, em posição de feto. Essa era uma lembrança dela, que eu herdei e posso testemunhar. Eis a memória coletiva aí, minha gente!
Suas histórias cheias de invenções e memória (pois a memória vem carregada de invenções muitas vezes) faziam dela uma pessoa única para a idade, para a região, para o tipo de vida e os sofrimentos todos que já havia passado e que passava ainda.
Era uma grande amiga.
Outro dia, me enchi de coragem e fui visitar a sua melhor amiga. Elas eram unha e carne há trinta anos. Aprontaram juntas na juventude e era linda a cumplicidade delas.
Ela não era a mesma pessoa. A falta de mainha na vida dela era tão destruidora quanto na minha. Ficamos eu e ela a nos olhar e a saber da falta daquela mulher em nossas vidas. Não tínhamos nada a fazer. A morte é mesmo assim. Ela me disse, perdi a minha amiga. Com os olhos cheios de lágrimas. E eu respondi: eu também.
Ela deixou de fumar no enterro de minha mãe. Mas, depois, a saúde dela declinou. Era como se minha mãe fosse uma força para ela. Quatro anos depois da morte de minha mãe foi como se ela tivesse envelhecido anos. Se minha mãe tivesse viva, talvez isso não tivesse acontecido e aquela jovialidade estivesse ainda pulsando.
Elas  trocavam bilhetes engraçados. E eram irmãs, irmãs. Tia Marilene era testemunha da vida de minha mãe, do que era a mãe de minha mãe para minha mãe. Pois que elas também tinham tido uma amizade muito bonita. Mas, era uma relação muito mais tradicional de mãe-filha, muito mais diferente do que foi a nossa…

Enfim…falta. Vontade de um dedo de prosa com ela que era tão inteligente, tão viva e vivaz, tão interessante, tão envolvente, tão charmosa, tão não cansativa.
Saudades de suas invenções. Saudade de levantar no meio da noite e ela estar fazendo alguma peripécia, de eu perguntar o que era e ela desenrolar um fio de Ariadne e mais fios e fios e dali por diante evocarmos Minemosyne, Clio, Apolo….e Vênus.
A memória, a história, a arte e o amor. Foram ensinamentos que ela me deixou. E são coisas que ela ressignificava a todo momento. Eu sinto falta. Muita. Latente. Para sempre.



segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Lugar de mulher? Como assim?

Antes de qualquer coisa: postaria aqui uma foto que gosto muito: Hannah Arendt jovem, encostada em uma parede, fumando.

E a foto tem um motivo: abri o programa de uma disciplina que vou cursar agora chamada Pesquisa em Linguagem e o programa trabalhará um livro da Arendt. A condição humana. Um livro que já esteve em minhas mãos na época em que eu elaborava o projeto com o qual consegui entrar no mestrado. E que voltará agora em discussões.
Feliz por isso.

E o título da postagem se dá porque me lembrei que outro dia, pegando uma carona com umas pessoas que não conheço muito, alguém falava sobre umas cidades de interior e uma moça faloiu: "Lá é ruimd emais, não há nada o que fazer, deve ser bom para homem porque tem muitos bares, mas para mulher não!".

Como assim?
Então os bares são lugares só para homens?
Qual o lugar das mulheres, então?
A cozinha ainda? Os shoppings? Um clube para o chá das cinco?

Pasmei em saber que ainda há disso na cabeça de algumas mulhers: de que há classificações: o que pode um homem e o que pode uma mulher.

Qualquer lugar deveria ser para qualquer um.
Gente é gente... (como diria Caetano: e nasceu para brilhar e não para morrer de fome). (risos por conta do comentário-piada nada a ver).

Quem gosta de beber e de beber em bar: vai para o bar: seja homem, mulher, azul, anão, roto, feliz, descendente de japonês, etc.....

Que venha Hannah e que a moça aprenda que lugar de mulher é onde ela queira. Assim como o homem.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Maura Lopes Cançado

Ouvi o nome dessa mulher na última roda de leitura que fui (porque ontem rolou a roda e eu esqueci).
Escreveu um livro chamado: Hospício é Deus.

Li umas informações na Internet e encontrei um trecho de seu livro nesse endereço aqui:


Impressionou-me sua escrita. Suas histórias. Seu anonimato já não me impressiona, pois tenho ficado sabendo de muitos escritores que são normalmente esquecidos no Brasil...

Porém  o título do livro-diário de alguém que esteve num hospício é de fisgar qualquer um, não é não?

Por que será que lembrei tanto de Tiago e de Jadson, hein?
Pelo amor que dividimos pela literatura? Pelo tema abordado? Pelas lendas que giram em torno da escritora? Pelo tipo de escritura? Por tudo isso junto mais o fato de eu amá-los tanto?

Hum...deixa-me pensar...

Pessoas, procurem por esta mulher! Vale a pena.
E encontrando o livro: me chamem, rápido!
Dividamos, dividamos.
Nos juntemos e dividamos.
Sempre.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Sentimental bairrismo ou necessidade de re-conhecer?

Hoje estou sentimental (e bairrista?). Vontade de haver um poeta para cantar essa minha terra. Tão misturada. Tão contraditória. Tão dentro de mim. Gosto de pisar nesse chão. Mesmo que eu fale, tantas vezes mal. Hoje vi um homem carregando um boi pela feira, pelo centro de uma cidade do interior. Crianças de uma escola, na hora da recreação, cantaram: "Boi, boi, boi, boi da cara preta/ pega essa menina que tem medo de careta...
Ontem, vi um velhinho, corcunda, andando quase emborcado...
As caras tão marcadas. As velhas com coques na cabeça. As motos e os cavalos convivendo num mesmo espaço caótico, entremeeiro, nonsense.
Quero muito poder ainda viver os muitos lugares daqui de Sergipe. As cachoeiras da Ribeira, as praias em Pirambu, as cidades, a região da Grota do Angico que me encantou tanto quando fui lá: a carvalhada, as pessoas que carregam o mito de Lampião como parte de suas histórias de vida.
E, tanta coisa que nem posso falar/descrever pelo fato de eu ter 28 anos e conhecer tão pouco ou mesmo não conhecer nada.
E, acho que por isso, tantas vezes para mim é fácil me encantar com outras terras, outros lugares que não esse aqui tão vivo, tão pulsante, tão latente e tão despercebido.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

A velhice - seria um comentário, pois que sem mais: virou postagem!



Antes de tudo: também eu estava afastada de escrever aqui, um lugar que também eu aprendi a gostar. Estive mergulhada em livros por conta do mestrado e aproveitando o feriado-quase-férias para dormir também até bem mais tarde.
Li o texto de Jadito e comecei a comentá-lo. Decidi postar porque no comentáio não rola de colocar foto e eu queria ilustrar o texto com uma foto (ô, mania) e também lá não tem a opção de colocar nome de livro em itálico, colocar corezinhas (e hoje estou fresquinha, fresquinha). E também queria motivos para escrever aqui. Andava ressabiada...
Enfim, abaixo o texto-comentário:

"A velhice é o meu tema (falo tema que estudo no mestrado, no livro da Alina Paim, a memória e a velhice de Teodoro, personagem de A sétima vez). Assim como a morte muito me interessa, mas ainda não tive impulso (leia-se: coragem) de estudá-la. Adoro Teodoro, o personagem da Alina Paim porque ele tem 67 anos e nem por isso deixa de viver e de lutar pelo que acredita defensável: falar na época da Ditadura Militar brasileira. Adoro a Hilé, da Hilda Hilst que também está velha. Gosto da Olímpia, personagem de Adélia Prado (Quero minha mãe) porque ela também tem mais de 60 e o livro é foda e ela busca na memória a vida dela toda e a vida dela no presente não deixa de ser interessante porque ela tem mais de 60. Adoro todo o A via crucis do corpo, da Clarice porque traz muitos personagens velhos. A velhinha que arde, que se masturba. A outra que se perde no Maracanã, masque se perde mesmo é na vida (essa de outro livro de contos que não o A via crucis...). Um dos livros "teóricos" que mais me encantou foi o Memória e sociedade - lembranças de velhos, da Eclea Bosi. Os filmes como Umberto D, como aquele Hamaca Paraguaya (que vimos juntos) e outros tantos que tocam nesse tema me encantam. Me encantam e me fazem pensar.
E penso nas coisas que você escreveu e que fazem todo sentido para mim.
E lendo agora Matéria e Memória e A memória, a história e o esquecimento: tudo isso faz muito sentido para mim, sim! Sentido e significado.
Também tenho a sensação de intensidade guardada na pele, na boca, em mim. E tenho pensado que isso da eterna juventude, de enxergarmos a potência só na juventude,  as possibilidades do sexo só na juventude é mais uma construção, assim como o é a sexualidade, etc.
Lembro-me, agora, para fechar, do que propôs Hilda Hilst às escritoras: montar um bordel geriátrico! Ela já imaginava Lygia Fagundes Teles de luvas sete oitavos, no caixa a receber a grana...
Lembra-se do "Teje presa", da Hildinha?
Envelhecer faz parte.
E o nosso velho Bukowski?
E o nosso velho e erótico Carlos Drumond de Andrade?
Fecho, de verdade, com um poema dele:

Amor e seu tempo

Amor é privilégio de maduros
Estendidos na mais estreita cama,
Que se torna a mais larga e mais relvosa,
Roçando, em cada poro, o céu do corpo.
É isto, amor: o ganho não previsto,
O prêmio subterrâneo e coruscante,
Leitura de relâmpago cifrado,
Que, decifrado, nada mais existe
Valendo a pena e o preço do terrestre,
Salvo o minuto de ouro no relógio
Minúsculo, vibrando no crepúsculo.
Amor é o que se aprende no limite,
Depois de se arquivar toda a ciência
Herdada, ouvida. amor começa tarde.

sábado, 19 de junho de 2010

Dos lugares - Zicartola


Em Buraco (apelido carinhoso de nossa querida cidade), é comum reclamarmos que não há um lugar para irmos. Os lugares são ou elitizados ou alocam eventos que começam muito tarde da noite e, por esse motivo, torna-se de difícil acesso para quem não tem carro ou, no mínimo, carona certa.
Os domingos em Buraco são entediantes, os sábados mal-aproveitados, etc.
Como havia postado algo sobre o grande Cartola, não resisti e busquei um vídeo para mostrar um pouco do que foi e do significado do restaurante Zicartola: espaço onde havia excelente comida, pois Zica cozinhava muito bem, e excelente música, a saber, foi lá que teve nascimento a carreira de Paulinho da Viola!
Um trecho dessa história segue abaixo, retirado do livro "Paulinho da Viola, sambista e chorão", de João Máximo:

“(...) Zicartola, restaurante que Angenor de Oliveira, o Cartola, iluminado compositor, e sua mulher Zica, exímia cozinheira, abriram no sobrado da Rua da Carioca, 53. O restaurante foi uma espécie de extensão das reuniões que se faziam em outro local, o segundo andar da Rua dos Andradas, 81, onde funcionava a Associação das Escolas de Samba e onde Cartola e Zica viveram por algum tempo, ele como vigia de todo o prédio. Cartola – depois de longo sumiço que levara quase todo mundo a supô-lo morto – fora redescoberto por Sérgio Porto enquanto lavava carros em Copacabana. Para Sérgio, aquele negro magro, de nariz estranho, tumoroso, era o personagem principal das histórias que o tio Lúcio Rangel lhe contava, ilustradas por sambas admiráveis. Redescobrir o ‘falecido Cartola’ foi como dar vida a uma lenda. E Sérgio, cronista mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta, teria todo o direito de gabar-se disso até o fim de seus dias.
O que se passou na Rua dos Andradas foi assim como se o Brasil quisesse recuperar o tempo perdido sem a música de Cartola. Pois era justamente para ver e ouvir Cartola que iam lá incontáveis sambistas, de início os mais ligados à tradição, como Zé Kéti e o jovem Élton [Medeiros]. (...) Zé Kéti aproximou-se de Cartola porque este tinha uma idéia: organizar um conjunto de samba a ser batizado de A Voz do Morro (...) O (...) conjunto – formado entre outros por Cartola, Nélson Cavaquinho, Jair do Cavaquinho, Nuno Veloso, Zé Kéti e o jovem Élton – não passou da idéia. O que não impediu que aquelas reuniões musicais ganhassem fama. Em pouco eram prestigiadas não só por representantes da bossa nova, como Carlos Lyra e Nélson Lins e Barros, mas por gente de outras cidades, outros estados, fazendeiro fretando avião a fim de levar seu povo para conhecer Cartola. Resultado: o sobrado ficou pequeno para tanta gente. Por isso Eugênio Agostini, um empresário louco por samba, deu a Zica a idéia do restaurante. Ele e os pri
mos Renato e Fábio seriam seus sócios, naturalmente bancando os gastos iniciais. Os pratos dela e os sambas de Cartola haveriam de fazer o resto. Que ela mesma procurasse o lugar para a nova casa. Andou, andou e achou o sobrado da Rua da Carioca.
O Zicartola duraria pouco, apenas 20 meses. Mas marcaria de forma profunda a vida cultural da cidade, ou mesmo do país, na música, no teatro, na poesia e nas idéias que eram discutidas nas noites das quartas e sextas-feiras, às mesas distribuídas pelo pequeno restaurante. Começou a funcionar em 9 de setembro de 1963, mas só em 18 de outubro foi considerado pronto para a inauguração oficial. Pratos e sambas não seriam o bastante para compensar os prejuízos causados pelos muitos amigos que chegavam, ouviam música, comiam, bebiam e penduravam as contas para nunca mais (sem falar nos que andaram metendo a mão na contabilidade de Cartola, grande artista, péssimo negociante). Mas o restaurante seria, durante esse tempo, um verdadeiro templo. (...) Ali professavam sua fé no samba tradicional Ismael Silva, Nélson Cavaquinho, Carlos Cachaça, bambas da Mangueira, da Portela, do Império Serrano, do Salgueiro, de toda parte.
Eram dois shows, sempre nas noites de quartas e sextas. No primeiro, aqueles bambas se apresentavam sob a direção musical de Zé Kéti. No segundo, brilhavam Cartola e seu violão. Seguia-se o grand finale, no qual um convidado ilustre recebia a Ordem da Cartola Dourada, criada por Hermínio [Bello de Carvalho]. (...)
Foi Hermínio quem levou Paulo César ao Zicartola. Um fato importante na vida do então bancário, pois ali ele ficou conhecendo sambistas que, em sua timidez, eram entidades inatingíveis. Mais importante: passava a ser um deles. Desde sua estréia no primeiro show da noite, cantando sambas dos outros, causou forte impressão. Inclusive em Cartola, de quem Paulo César se aproximou humilde, cheio de cerimônia. O encontro dos dois é historicamente significativo, verdadeira passagem de bastão, sem que no entanto se tivesse consciência disso. Muito do que Paulo César estava por fazer – manter a tradição, sem maculá-la, requintar o samba sem deformá-lo – Cartola já vinha fazendo. Não fossem ambos tão tímidos, tão reservados, e seria inevitável se tornarem parceiros. Mas Zé Kéti também se encantou com o som do violão de Paulo César, sua musicalidade, sua voz terna, afinada, que combinava o timbre de autêntico sambista de escola com a técnica precisa de crooner profissional. O diretor musical do restaurante logo anteviu
 no moço de 20 anos um novo bamba. Copmentou isso com o jornalista Sérgio Cabral, que na época assinava, com José Ramos Tinhorão, uma seção de música popular no Jornal do Brasil e era mestre de cerimônias no Zicartola. Sérgio concordava. Mas achava que, definitivamente, Paulo César não era nome de sambista.
– Que tal Paulo da Viola? – indagou Zé Kéti, certamente inspirado em Mano Décio da Viola, veterano compositor do Império Serrano.
– Paulinho... Paulinho da Viola é melhor – completou Sérgio.
E assim Paulo César Baptista de Faria foi rebatizado para todo o sempre.” 

O vídeo é Clementina de Jesus, no Zicartola cantando "Ensaboa". 
Ai, ai que tivéssemos um lugar aqui em Buraco onde fosse realmente legal ir, tomar umas cervejas, ouvir umas músicas legais, conversar com pessoas queridas, etc.

Cartola e o esquecimento - uma memória


Grande Cartola e a lembrança de nossa mania de brasileiro de esquecer ou de não valorizar ou de valorizar só depois de mortas as pessoas da música, da literatura, do teatro, etc.
Essa criatura foi encontrada lavando carros por um jornalista e, teve, depois disso, sua carreira minimamente renovada depois de tempos de ostracismo...
Assim quase se deu com Tom Zé num posto de gasolina de um seu sobrinho até ser re-descoberto por um estrangeiro!
E viva nosso Brasil brasileiro terra de samba e pandeiro!

sexta-feira, 18 de junho de 2010

O palhaço e a bailarina



Pela manhã, li o livro infantil escrito por Antonio Carlos Viana e Sônia Maria Machado, intitulado "O palhaço e a bailarina".
O palhaço e a bailarina é a história de Alegria, uma cidade triste que se renova com a chegada de dois artistas (o palhaço e a bailarina).
Mas, para lá de ser apenas isso, o livro mostra o surgimento de uma disputa. A cidade, uma vez alegre após o contato com as artes, passa logo a criar dois partidos: o da bailarina e o do palhaço, sem mesmo que esses saibam da tal cisão.
Os dois acabam por ficar tristes e buscam logo uma solução. A solução pensada não deixa de carregar beleza e faz com que surja uma nova expressão artística em Alegria: o teatro.
Assim, pode-se falar que a história é uma história de disputas e que mostra que cada um tem o seu espaço.
É uma fábula que fala sobre a arte e que não há uma arte melhor que a outra.
É um livro para crianças. Surgido, segundo os autores, das histórias que a professora Sônia contava para o seu filho numa rede para que este dormisse e viajasse na imaginação. Mas, que faz om que adultos pensem muito em suas ações.
As ilustrações são belas.
Apesar de numa primeira leitura, apressada, imaginarmos apenas a oposição entre o Bem e o Mal, o livro carrega um elogio às Artes necessário para que pensemos sobre as nossas relações com os outros.
O livro é belo. E é bom imaginar uma cidade chamada Alegria que é triste quando seus moradores não a preenchem com bons sentimentos, com bons momentos. É bom porque me fez pensar que toda e qualquer sociedade começa em minha testa (na testa de qualquer um de nós).
Lembrei-me das cidades imaginadas pelos bichos do Saltimbancos.
Todas elas seriam governadas por crianças.


quarta-feira, 16 de junho de 2010

Ciências x Humanidades

Alimento o pesadelo de que, em alguns anos, os aviões não decolarão, mas todos nós seremos muito elegantes.
...mas é o caso de perguntar por que somente a arte teria poderes civilizatórios.
Sem desmerecer os excelentes alunos de cinema, letras ou sociologia, é impossível negar que, para alguém sem grande talento ou dedicação, será sempre mais fácil ser medíocre num curso de humanas do que num de exatas.

Todas as citações são do documentarista João Moreira Salles retiradas de um texto publicado na última edição de domingo do jornal Folha de São Paulo, no caderno Ilustríssima.


Li o artigo uma única vez. No computador da Bicen.

(...)

O texto aqui

terça-feira, 1 de junho de 2010

Como escrever sobre coisas em que não acredito?




Antes de conhecer um pouco mais o sistema filosófico proposto por de Immanuel Kant, sentia uma profunda desconfiança, chegando até a um preconceito descabido. Depois com o contato paulatino com a obra que talvez mais se estude hoje no mundo (ao menos em filosofia) “ A Critica DA Razão Pura” tive que ceder ao brilhantismo sintético do alemão, digo sintético, porque percebi que o que ele fez foi unir o que tinha de melhor na ontologia até então. Esta obra é imprescindível não só para a filosofia mas para qualquer teoria das humanas, se tornou uma obra paradigmática . Contudo, estudando outras coisas do alemão percebi que aquela intuição inicial não era de toda equivocada, estou a ler um texto chamado “ Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita” e estou com dificuldade de ficha-lo pelo simples fato que não acredito m uma só linha escrita.
Neste texto, Kant afirma que a natureza determina as ações manifestadas pelo homem e que tais ações, boas ou ruins são necessárias para se alcançar o progresso da humanidade. E é através do jogo de opostos entre o sociável e o insociável presente no comportamento humano, ou seja, é natural que o homem cometa atrocidades e ao mesmo tempo bondades, pois fundará no fim uma sociedade Justa, onde não se precisará de leis externas, pois a razão chegara a fundar uma sociedade onde a moral imperara de forma perfeita, justa e que levara a suprema felicidade, esse é o projeto que a natureza preparou para o homem.

Alguém aqui acredita que estamos em progresso? Que estamos a caminho de uma sociedade justa? Que existe uma força natural conduzindo o homem, mesmo que por caminhos tortuosos, a um fim em que a moral imperara sem leis?

Eu não acredito e durante a leitura mais coisas estranhas são defendidas pelo autor, que outrora delimitava os limites da razão, e que neste texto vai para além do que ele mesmo delimitou.


JT.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Passeios de bicicleta e Insônia


"O narrador conta o que ele extrai da experiência - sua própria ou aquela contada por outros. E, de volta, ele a torna experiência daqueles que ouvem a sua história"
Walter Benjamin



"Na realidade, não há percepção que não esteja impregnada de lembranças"
Henri Bérgson



Noite dessas, com a sempre insônia que me tem acometido, em lugar de ficar nervosa e levantar da cama para ler, ouvir música, escrever, assistir a um filme ou mesmo caminhar pelo apartamento ou ficar na janela olhando a rua, decidi fazer um passeio. Um passeio imaginário. Decidi rememorar alguns passeios de bicicleta que eu fazia na cidade de minha meninice. Fechei os olhos, visualizei a bicicleta, a casa, na rua da Frente e pensei: "Às vezes que eu ia para o lado esquerdo, eu fazia assim...". E fui refazendo os caminhos, passando pelas pessoas, pelas casas das pessoas... Aqui é a casa de Djanete, tem a casa de Jotinha, o canteiro de Noêmia, passei por Jorge, cheguei à ponte da adultora. Resolvi voltar, passar por onde já havia passado, passar reto da minha casa e ir para o lado direito. Passei pela lanchonete de Baixinho, entrei e contornei o Relógio, segui a rua da Frente, passei pela farmácia Tavares e seguindo, cheguei ao Beira Rio, aqui eu poderia ver a lanchonete do paio do primeiro garoto de quem gostei ou ver, saindo do rio, de ter tomado banho no rio, o garoto que também gostei e que morreu, mas não os vi a nenhum dos dois, apenas segui. Fui mais adiante e no fim da rua da Frente, dobrei uma esquina e voltei pela rua da Palma. Aqui, aconteceu algo incrível! Pararam as minhas recordações. Entraram as recordações de minha mãe. Eu já não estava mais de bicicleta. Estávamos as duas, mãos dadas, eu a escutá-la. Ela falava do que e de como era a rua da Palma da infância dela (como em tantas das nossas conversas quando por ali passávamos juntas).
As bordadeiras nas portas, em fins de tardes muito bonitos. Até os homens bordavam. E caminhamos com ela falando para mim de suas recordações, das procissões, das festas de Bom Jesus... Entravam depois os anos de ditadura, ela adolescente, as músicas, os livros...E como eu gostava de ouvir tudo aquilo!

De repente, eu pensei nas histórias dos personagens de Bosi. Do livro Memória e sociedade - lembranças de velhos, da Ecela Bosi.

As histórias dos personagens de Bosi mostram que a função social exercida durante a vida ocupa parte significativa da memória dos velhos, e isso não ocorre por acaso. A memória, na velhice, é uma construção de pessoas agora envelhecidas que já trabalharam. Assim, é uma narrativa de homens e mulheres que já não são mais membros ativos da sociedade, mas que já foram. Isso significa que os velhos, apesar de não serem mais propulsores da vida presente de seu grupo social, têm uma nova função social: lembrar e contar para os mais jovens a sua história, de onde eles vieram, o que fizeram e aprenderam. Na velhice, as pessoas tornam-se a memória da família, do grupo, da sociedade.

O homem jovem e ativo, em geral, não se ocupa com lembranças - não tem tempo para isso. Dos jovens, a sociedade espera produção, e muitas vezes não se dá conta da violência implícita nesse processo. Produção nas indústrias, nas minas de carvão, produção de conhecimento - muita produção. Dos velhos, não. Deles, espera-se a lembrança. Mas quando não se valoriza essa função social, como acontece mais correntemente, há um esvaziamento e uma desvalorização dessa nova etapa da vida.

Mas não é só o tempo "socialmente permitido" que os velhos têm para se dedicar às suas lembranças. Bosi, em seu livro, lembra que os velhos têm uma memória social atual mais contextualizada e definida, pois são expectadores de um quadro já finalizado e bem delineado no tempo. Aos mais jovens, ainda absorvidos nas lutas e contradições de um presente que os solicita intensamente, falta experiência para lidar com as lembranças.

A relação estreita entre memória e trabalho mostrada por Bosi em seu livro, feita pela análise das vidas de seus personagens, e a constatação de que a função social da velhice, nem sempre reconhecida, não deveria ser perdida. A autora vê e mostra os velhos com afeto e compreensão e, ao final do livro, já não separa as suas próprias memórias das memórias de seus personagens. Ao contrário de outras publicações do tipo, não coloca os velhos em uma situação passiva, pois enquanto eles lembram, eles ainda "fazem".

O final do livro é afetuoso e valoriza o trabalho como ponto central da memória dos velhos: "A memória do trabalho é o sentido, é a justificação de toda uma biografia. Quando o Sr. Amadeu [um dos velhos que é personagem] fecha a história de sua vida, qual o conselho que dá? De tolerância para com os velhos, tolerância mesmo com aqueles que se transviaram na juventude: Eles também trabalharam".

Quando chegamos, ao topo da rua da Palma (que é uma ladeira disfaçada, "fingida" diria um amigo) em frente à praça do Pirulito ou da Catedral, dormi. Não sonhei com minha mãe, nem com a cidade. Acordei lembrando de que quando eu era bem menor que a Nina das lembranças que decidi evocar por conta da insônia, quando não conseguia dormir, minha mãe cantava para mim. Ela mesma já não recordava mais as cantigas de ninar e cantava Luiz Gonzaga (ela mesma pedia que não pedissem explicações para tal fato). Ríamos. E eu: dormia.