domingo, 29 de agosto de 2010

Identidade, autoridade e liberdade - o potentado e o viajante


Identidade, autoridade e liberdade - o potentado e o viajante é o nome de um dos textos do Edward Said que está no livro Reflexões sobre o exílio e outros ensaios.
Said refletia sobre o que falar numa determinada palestra quando encontrou-se com um colega ao qual pediu sugestões. O colega, então, perguntou-lhe o nome da palestra e ele respondeu que era Identidade, autoridade e liberdade. E o amigo disse-lhe: "Interessante. Você quer dizer que identidade é o corpo docente, autoridade são os administradores e liberdade…"Liberdade", disse ele, "é a aposentadoria".
Comentário não só chistoso, mas cínico, mas que apesar da irreverência, reflete sobre a questão da liberdade acadêmica.
Todo o texto vai versar, partindo de um ponto de vista bastante afetado pela situação da Palestina, com a qual Said se identifica por origem e por escolha e, dessa maneira, defende, sobre a Universidade, sobre a liberdade acadêmica.
Gostei muito de muitas passagens do texto. Posso dizer, de maneira menos hermética, que gostei do texto.
Especialmente me fez lembrar sobre os papéis que desempenhamos como estudantes mesmo, e me fez lembrar até do último post que li de Wesley sobre o Dumbo, sobre sua participação e insistência e esperança de servir para alguma coisa essa sua perseverança em exibir filmes na Universidade, mesmo ouvindo vez por outra, ou mesmo quase sempre, coisas absurdas que vão de filmes, gosto à concepções do que vem a ser infantil, leia-se, de como se concebe o que é uma criança.
A uma altura do texto, Said escreve que "Dizer que alguém estuda ou leciona é dizer que tem a ver com a mente, com valores intelectuais e morais, com um determinado processo de investigação, discussão e troca, atividades habitualmente não muito praticadas fora da academia".
Eu acho que esse trecho, mesmo assim deslocado, desapertado do inteiro do texto do Said, responde um pouco do que acho que deveria ser a academia.
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Lendo-o pela terceira vez (e não vou ficar colocando passagens do texto aqui para não ficar algo muito acadêmico ou mesmo enfadonho), fiz muitas viagens pensando em outros textos. Lembrei-me de Clifford Gertz em Interpretações da Cultura, no texto Rinha de galos em Bali. Eu o havia lido e, recentemente, alguém o comentou ligeiramente e me fez rememorá-lo. Gertz diz em seu texto da dificuldade de colher depoimentos das pessoas envolvidas na rinha e que só os conseguiu quando a polícia chegou na área, todos correram e ele, por medo ou por intuição, correu junto. Daí, na próxima investida, o estudioso ouviu: "Vamos falar, pois você é um dos nossos".
Essa passagem do Gertz rememorada um santinho antes de meu contato com esse texto do Said me fez pensar em como o ambiente acadêmico é representado no imaginário de pessoas que não o freqüentam e até mesmo de nós que o freqüentamos.

Mais adiante, vejo escrito no texto de Said, esse fragmento: "Nenhum de nós pode negar o sentimento de privilégio levado para dentro do santuário acadêmico". Antes de falar sobre a questão do privilégio, me fez dar outra viajada a expressão santuário acadêmico. Viajei para o texto de Virginia Woolf: Um teto todo seu.
Lembrei-me da descrição irônica, irresistível do começo de seu texto. Virginia conta-nos de sua primeira inspiração (na verdade de como a sua primeira idéia fora cortada) para escrever a palestra que irá proferir sobre "A mulher e a ficção". Ela está tentando explicar como deveria construir um argumento para desenvolver a idéia de que a mulher, para escrever ficção, precisa ter dinheiro e um teto todo dela.
Virginia é acometida pelo "puxão"da idéia nascendo, à beira do rio (por esse motivo ela vai usar a metáfora do peixe pequeno para a idéia nascendo ainda). Assim que sente a inspiração para o desenrolar das idéias nascer, ela se levanta e se põe a caminhar. Logo, vê-se na grama, andando para um lado e para o outro. E, sente o primeiro embargo: Um bedel a interrompe. Ali só pode estar Estudantes. O lugar dela é no cascalho.
Ok. Ela acha que andar na grama é mais confortável que andar no cascalho, mas continua a andar, no cascalho e põe-se a pensar mais e mais porque perdera o fio da meada, ou como a mesma diz, perdera o seu peixinho (pois Virginia usa a metáfora do peixe pequeno para a primeira idéia nascente).
Lembra-se de referências bibliográfica e, lembra-se, de que pode consultá-las na biblioteca da Universidade de Oxbridge. Santuário que guarda tesouros como os que agora aparecem em seu pensamento.
Sobre as escadas, envolta em pensamentos mil que vai nos citando… Até que, pela segunda vez, é barrada. Agora, ouve que as damas só eram admitidas na biblioteca da faculdade acompanhadas por um Fellow (estudantes que tinham privilégios, que já haviam terminado os cursos, mas tinham ligação com a instituição, tipo pós-graduados) da faculdade ou providas de uma carta de apresentação.
Virginia se afasta, dessa vez possessa. Pensa em o que fará para o resto do dia. E a uma certa altura, encosta-se a um muro, de onde enxerga a universidade e nos diz: "Quando me encostei no muro, a universidade pareceu-me de fato um santuário onde se preservavam tipos raros, que logo se tornariam obsoletos se deixados a lutar pela existência nas calçadas do Strand".

Porque fiz tantas viagens para pensar e falar num só texto como o do Edward Said? Talvez não seja porque sou louca não. O subtítulo do próprio texto é o potentado e o viajante. Por todo o texto, então, perpassa a idéia de que não podemos justificar nosso anseio por justiça se defendemos apenas o conhecimento nosso e de nós mesmos. Portanto, nos diz Said que "o modelo de liberdade acadêmica deve ser o migrante ou o viajante, pois se no mundo real, fora do universo acadêmico, precisamos ser nós mesmos e apenas isso, dentro da academia precisamos ser capazes de descobrir e viajar entre outros eus, outras identidades, outras variedades da aventura humana. Mas - o que é mais essencial -, nessa descoberta conjunta do eu e do Outro, o papel da academia é transformar o que poderia ser conflito, disputa ou asseveração em reconciliação, reciprocidade, reconhecimento e interação criativa".

Claro que não estamos mais no tempo em que mulheres e negros não entravam nas universidades. Mas, não é demais reavivar um texto assim como o de Woolf. Não é demais reavivar lembranças traumáticas como a Shoah, o Apartheid, o que foram as ditaduras militares na América Latina, enfim, nunca é demais lembrar erros cometidos no passado. Até mesmo para não repetirmos esses mesmos erros no presente ou no futuro.

E o Outro de hoje, pode não ser a mulher, mas existem muitos Outros ainda. E a academia é um lugar para adotarmos espaço para pensar sobre a questão. Com liberdade. Adotando o ponto de vista de um viajante. Que muda a rota, que mesmo com mapa, se perde, conhece, observa, interage, pergunta, aprende na carne.

São questões a se pensar. Sobre o Outro. Sobre o cânone. Sobre o que se estuda e como se estuda. O que se aborda. E daí é tão importante nos perguntarmos: E criança não pensa?
Diziam isso dos índios os portugueses quando aqui chegaram. Diziam, esses mesmos portugueses, dos negros que não tinham alma.
Dizem das mulheres que pensam menos que os homens.

É bom viajar. Nos textos. Nas idéias. E construir junto com os outros passageiros da viagem que é optar por estar nesse ambiente que é a academia.

9 comentários:

  1. kkkk, sem querer postei várias vezes o mesmo comentário. Sempre aparecia a mensagem: TOO LARGE!
    kkk

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  2. Lembra da conversa que tivemos muito rapidamente sobre o "divinar" desnecessário das coisas humanas: sensibilidade, sensações, sentimentos etc... Esse pensar para mim é muito novo, embora tenha, sofrivelmente, tais coisas explodindo na pele. Mas estranhamente numa disciplina do mestrado descobri que essas coisas enraízam e fortificam uma outro coisa que desprezei durante muito tempo na vida: a sabedoria. Achei durante um bom tempo na academia que ser um verdadeiro acadêmico é escolher opiniões herméticas, absorvê-las, mesmo não completas e herméticas, tomando por base a postura hermética e impenetrável de muitos acadêmicos, achando assim que estava percorrendo O CAMINHO.
    Descobri que razão por razão nunca nos tirou da escuridão.
    E pensando nesse instante diferentemente do início do meu comentário, vejo que a maioria das pessoas não diviniza as coisas essencialmente humanas (preconceituando), ao contrário, colocam-nas muito aquém.
    Me desiludi com o "santuário acadêmico". E por conta, EXATAMENTE, disso sofro agora com a fome do conhecimento. Quero conhecer, quero muito poder estudar mais, independentemente das titulações (embora eu saiba que para ser aceito cientista seja necessário tê-las), mas que venham como consequência de um querer muito maior.
    __________________ usando seu recurso rs

    Me entristece deveras os EGOS. São, na minha opinião, barreiras absurdas, gigantescas, imensas para o fluir e o usufruir dos benefícios do CONHECIMENTO, que para mim deve ser distribuido como água, assim, para que todos saibam, de maneira inteligível. Às vezes penso que a apropriação do conhecimento e daí o seu uso enquanto arma na briga de EGOS é puro reflexo e perpetuação de um modo de pensar tão egoísta quanto o capitalista. Que somente traz malefícios. É como pensar : nossa, é só o que tenho, esse conhecimento limitado, preciso preservá-lo, preciso impô-lo, preciso que as pessoas entendam que ele é O CONHECIMENTO, porque é tudo o que me resta nessa vida. Nada mais desesperado nessa luta cotidiana de vencedores e perdedores do modo de vida que vivemos hoje, o capitalista. EU SEI.SOU VENCEDOR. EU TENHO. SOU VENCEDOR.
    É o que mais noto no meio acadêmico entre professores e alunos. É por isso que penso que as grandes questões do planeta, indepedem muito da técnica, da desigualdade de classes. Creio que a ACOISA vem antes, muito antes. Ainda não sei do que se trata, mas vem antes. Sinto e apenas isso que a sabedoria é mais poderosa numa transformação. Creio que uma transformação é mais poderosa que uma mudança. E que brilhantismo mesmo seria se compartilhássemos o que sabemos e procurássemos ao menos entender os porquês do outro.
    ____________________
    Achei que veria isso na universidade, vi apenas a manutenção do que está fora. Sábio, não vi nenhum. Só egos: vazios, egoístas, individualístas, herméticos. Fechados num mundo de escuridão e julgamentos, como deuses (no diminutivo), deuses pequenos, lêem, lêem, lêem, "produzem conhecimento", como se o seu modo fosse o único a gerar conhecimento.

    Acho que lêem para ter armas num embate discursivo de EGOS, e nada mais(mas, como diria Antônio Carlos QUE NÃO É O VIANA: isso é o que eu penso).Queria aprender a ler a vida, num vô mentir.

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