sábado, 28 de agosto de 2010

Memória e subjetividade amorosa


"Uma memória coletiva se desenvolve a partir de laços de convivência familiares, escolares, profissionais. Ela entretém a memória de seus membros, que acrescenta, unifica, diferencia, corrige e passa a limpo. Vivendo no interior de um grupo, sofre as vicissitudes da evolução de seus membros e depende de sua interação. Quando sentimos necessidade de guardar os traços de um amigo desaparecido, recolhemos seus vestígios a partir do que guardamos dele e dos depoimentos dos que o conheceram. O grupo de colegas mal pode constituir um apoio para sua lembrança, pois se dispersou e cada um se integrou num meio diverso daquele que conheceu. Como salvar sua lembrança senão escrevendo sobre ele, fixando assim seus traços cada vez mais fugidios?" (Ecléa Bosi, in: Memória e Sociedade - Lembranças de velhos)

Impossível para mim reler esse livro da Ecléa Bosi e não fazer, a cada releitura, uma releitura de mim mesma com a minha mãe, com a minha infância, com o meu passado, com os espaços os quais já percorri e, portanto, com o meu presente.
Não temo dizer que meu principal objetivo ao trabalhar com a temática da memória no mestrado seja o de nunca esquecer. Seja o de estar sempre perto de minha mãe.
É como se eu tivesse um dever de memória, precisasse criar um lugar de memória, para falar nos termos de Pierre Nora.
E não há dúvida de que identidade e memória tem muito a ver um com o outro. E ao estudar memória, acabo constituindo uma noção grande de identidade. Acabo pensando coisas sobre mim e sobre ela (a minha mãe) e sobre o lugar que nos abrigou por quase toda a minha vida que foi a cidade de Propriá e sobre Aracaju essa cidade sempre presente também em nossas vidas. E assim, talvez me confunda mais e melhor sobre o que seja eu. Sobre o que foi ela. Sobre o que é que fui eu. Sobre quem é ela.
Outro dia estava eu a ler um livro escrito por Todorov chamado O homem desenraizado. Ele começa esse seu livro falando sobre a experiência que viveu ao viajar para ministrar uma palestra na Bulgária. A Bulgária é o seu país de origem. E ele retornou, depois de um exílio "circunstancial", como o próprio diz ter sido o seu, uma vez que não foi convidado a sair de seu país por motivos nem políticos (diretamente) nem econômicos ou de qualquer outra ordem. Foi uma opção. E ele não optara ingenuamente por deixar deixar uma terra "marginal"(em se pensando que Paris, lugar para onde foi, era, à época o "império" ou lugar onde outros lugares estariam em sua órbita). Ele foi estudar e lá ficou. Mas, é verdade que nunca concordou com a política governamental desenvolvida em seu país.
Depois de 18 anos fora de seu lugar de origem, distante lingüística e emocionalmente de seu lugar de origem, ele se viu em Sófia. Em sua casa. Reencontrando a mãe, amigos e até seus sapatos de jardinagem que sabia que eram seus pois que ainda guardavam os mesmos vícios de seus pés, as mesmas marcas.
Mas, antes, anos antes, Todorov nos conta que sonhava um sonho recorrente. Sonhava que visitava seu lugar de origem e, quando estava prestes a voltar à França, ia para estação de trem e de lá não conseguia sair. As situações nos sonhos eram muitas e variadas. Vezes havia esquecido a passagem em casa e se voltasse perderia o trem, outras ele entrava na estação, mas ao atravessá-la nada via que não fosse mato, outras ainda, estava de carona com um amigo que pegava um atalho e se perdia e chegavam atrasados à estação.
Ele estava impossibilitado de voltar à sua terra eleita, a França. E isso o apavorava.
Era um sonho. E quando se viu prestes a viajar de verdade para esse mesmo lugar dos sonhos e que era o de sua origem, ele tratou de prevenir possíveis não-voltas. Casou-se com a companheira de anos, escreveu a amigos que mantinham contato com a imprensa todos os dados de onde estaria e o que iria fazer lá, enfim, precauções que nos parecem absurdas ao lermos seu texto, mas que não são tão absurdas assim se lembrarmos que a Sófia vivia um regime autoritário comunista e que não seria tão absurdo acontecer-lhe algo.
Uma vez em Sófia, Todorov vive um processo estranho e dominante de reflexão quanto à sua identidade. Ele sente como se fosse um personagem duplo. Oras ele é o personagem búlgaro, outras ele é o personagem francês.Tudo o que se passava em seu interior, antes, com tranqüilidade, sem violência, todo o processo de desculturação, aculturação e de transculturação já vivenciados e já "superados", tudo veio à tona quando este se viu na Bulgária.
Foi preciso temer perder uma identidade escolhida, foi vivendo o embate junto aos que ficaram, foi se perguntando o que seria ele se ele não tivesse saído, foi pensando em tantas coisas que ele chegou a compreender que as identidades culturais não são apenas nacionais, existem outras ligadas aos grupos pela idade, pelo sexo, pela profissão, pelo meio social. Foi vivendo certas coisas na carne, como se de repente tivesse que não agir de maneira simples, mas sim ligando e desligando tomadas de si mesmo: a tomada búlgara, a tomada francesa, a tomada de ser filho, a tomada de ser amigo, a tomada de ser um intelectual que ia proferir uma palestra num país onde era estrangeiro e pertencente ao mesmo tempo, a tomada de ser isso ou aquilo. Entendeu, então, que em nossos dias todos já vivemos, ainda que em níveis diferentes, este reencontro de culturas no interior de nós mesmos.
E ao ler Todorov testemunhando um processo de identidade e de memória, eu lembrei de um conto de Luis Borges, que está em O livro de areia, chamado O outro. Nesse conto, Borges velho encontra-se com Borges jovem. Não são o mesmo. É seu duplo. Apesar de ser o mesmo Borges em tempos diversos, são pessoas diferentes. Vale a pena ler o conto. Por que agora estou já cansada de tanto fluxo de pensamento. De tanto sentir entrecortado. Já falei demais. E tudo isso para dizer que morro de saudades e que encontrei um jeito sim de ficar mais perto de minha mãe. E está aqui na memória, em cada coisa que escrevo, que relembro, que monto de novo. Mergulho. Superfície. Tudo ao mesmo tempo.
E tudo isso me ajuda a deixar de ser preconceituosa. A tentar compreender que se eu sou construção, também ela foi para ela mesma e para mim e continua a ser. Assim como qualquer outra pessoa. Assim como acontece com todo mundo.
Mas, ser construção não significa deixar de ser verdade.
E se um mesmo homem não mergulha num mesmo rio porque ambos, homem e rio, já não são o mesmo, como querer de mim ou dela ou de qualquer pessoa que seja algo estático?
E eu não falo aqui de hipermodernidade, de pós-modernidade, de tudo líquido.
Falo de possíveis e prováveis preconceitos mesmo. De como a gente encara uma mãe, uma mulher.
Minha mãe era uma mulher inquieta. Buscava coisas (e aqui coisas não é só o que de material possa existir, mas sim também idéias, sentires, etc.). Era inconformada com muito do que viveu, do que vivia. E isso é o que foi mais marcante dela para mim.
Isso estava em sua voz, grossa, rouca, de gritar para a vida. Seus grandes olhos verdes. Sua postura ereta. Ela era alta. E dizia ter só tamanho. Pois que se via como uma manteiga derretida. Isso estava em suas memórias, no que ela lembrava dos anos 60, de como rememorava o golpe de 64, ela com 20 anos de idade. Como ela reconstruía as ruas de Prporiá, a festa de Bom Jesus, o Cine Veneza, alguns tantos acontecimentos políticos. Como ela me explicava os nomes das ruas ou de como as ruas eram conhecidas.
Eu a amava e a temia (não só porque ela era a minha mãe, mas porque ela sabia assustar quando ficava brava). Respeitava. E falávamos de tudo. E éramos verdadeiramente amigas. Mesmo que vez ou outra ela dissesse: "Ei, mocinha, a mãe aqui sou eu, viu?". Ela era muito conversadeira (era assim mesmo que falávamos rindo quando varávamos a noite conversando: hoje estou conversadeira, estou com o conversador aberto).
Ela era intensa e como pessoa intensa não vivia as coisas por oportunismo ou de maneira reducionista.
Amava. E por amor sofreu.
Fumava. Parou um mês antes da morte. Parou porque estava doente e não podia mais. Mas, o cigarro era o seu companheiro. Daquelas tantas horas de insônia e que eu estava dormindo. E daqueles momentos que todos nós temos: aqueles que a gente não deixa ninguém penetrar, por mais que a gente ame muito, sabe?
Ela era assim e muito mais. Porque ela era gente. Gente  muito gente. E, como disse Clarice Lispector, para além de gente ela era uma Pessoa. Assim com maiúscula.
Ela era uma Pessoa. Tinha suas máscaras, seus sonhos, seus silêncios, suas brigas, suas opiniões, sua voz. Suas escolhas, suas dúvidas. Suas contradições. Era, enfim, uma Pessoa.
Amava música, livros, cinema. Falava sempre de tudo o que via, lia, assistia. E adorava pessoas e solidão. E era bonita, vaidosa. Era crítica, nada falava ou pensava sem fazer reflexões sobre.
Depois, adoeceu. Encucou com muita coisa. Na verdade com uma coisa. Desprezou o seu corpo. Mas, ela era tão e tanto, que mesmo depressiva, que mesmo doendo sempre, que mesmo com câncer, que mesmo sentindo dores recorrentemente, mesmo assim ela era encantadora. E, antes e depois, se permitia. Era uma Pessoa.
E eu morrerei se me esquecer de como foi especial, diferente, importante, feliz ter nascido dela, ter sido criada por ela, ter vivido tudo o que vivi com ela.
Tudo o que eu disser sempre vai ficar aquém. Pois é indizível ter tido a oportunidade de ter vivido ao lado dela.  De ter experimentado o que experimentamos.
Por isso pessoas como Kelli, como Suyanne, como Deise, como mesmo Tiago, como Delaninho, como Gustavo, com Cândida, como Silvinha, Dênia, Lísia, como todos os meus amigos (tantos, tantos, tantos que se eu for citar vou escrever eternamente) que a conheceram são tão importantes também como figuras que conviveram com ela meio que para testemunhar uma época, um fato, uma pessoa, um acontecimento. Que cantaram na cozinha lá de casa, que riram, que choraram, que ouviram-na tanto com sempre suas muitas histórias, que falaram, desabafaram (porque muitos de meus amigos falavam das coisas, conversavam mais com ela do que comigo sobre amores, dúvidas, medos, incertezas). Ela sabia ouvir como ninguém.
Era controversa. Chegando a ser engraçado. Lembro-me de que um dia, quisemos descobrir porque ela juntava a gente em casa, conversávamos cantávamos, bebíamos muito café, comíamos uma coisinha ou outra (porque ela adorava cozinhar e adorava que as pessoas gostassem das comidas que ela fazia ou mesmo, ela era toda jeitosa, cortava queijo, colocava azeitonas, um patê, biscoitinhos num prato e refrigerante a vista, copos para quem quisesse se servir…sempre tinha que oferecer algo, mas sem a insistência chata, era sempre como se partisse de nossa vontade e como ela sabia respeitar os outros!) e de repente, todos nós decidíamos ir embora, deixar para continuarmos os papos e a cantoria amanhã, mas isso sempre coincidia com o cansaço dela. Ela juntava a gente sem que a gente percebesse e desfazia o ajuntamento sem que a gente percebesse também. Era ao bel-prazer dela, a danada. Ela sempre charmosa, cheia de conversa mole. E a gente caindo, caindo.
Quando digo que era gente, Pessoa, é que ela mudava de humor, ficava triste, zangada, não queria ver ninguém, depois voltava toda alegre, eufórica, e isso nem sempre era assim tão evidenciado ou tão antagônico e demarcado, era um cotidiano, um dia-a-dia, mas ela driblava isso com uma beleza simples (se bem que outras tantas sofisticadas).
Pintava quadros, panos, toalhas, bordava, coloria as coisas, dava um outro tom. Lembro-me de ela ter pego uma toalha de renda toda branca e tê-la pintado. Pintou flor por flor. Ainda guardo a tal toalha, inclusive ainda a uso. Ficou um trabalho ímpar. Belo. E ela feliz, orgulhosa, mas,  muito sinceramente soltou: "Essa vai ser a única, pois estou com os olhos arrombados, ô gota!". Era assim. Espontânea. E desarrumava as coisas para rearrumá-las com graça, com arte, com beleza.
Adorava Augusto dos Anjos e o Castro Alves sensual. Citava-os sempre. E vivia lembrando de que o beijo era a véspera do escarro.
Claro que de uma personalidade como a dela eu só posso morrer de falta.
Não era submissa, não passava desapercebida nunca. E me ensinou que a amar e ser amado não significa subjugar a outra pessoa nem estar subjugada.
Não era utilitarista. Não puxava saco. Apesar de ser carinhosíssima e muito compreensiva. Tinha um olho de lince. Sabia viver.
Não olhava para trás quando andava e dizia que se alguém a chamasse pelo segundo nome, nunca acharia que era com ela.
Falava do tempo em que seu pai era gerente de um grande cinema em Propriá com tamanha paixão que me apaixonava também pelas suas histórias. E acho que acabei testemunhando um tempo que não o meu. Como é viva a imagem de um homem que perdera a mãe, foi ao cinema, assistiu a um rama, riu a sessão todinha e, quando todos foram embora, chorou copiosa e dolorosamente, sozinho, emborcado, caído da cadeira, em posição de feto. Essa era uma lembrança dela, que eu herdei e posso testemunhar. Eis a memória coletiva aí, minha gente!
Suas histórias cheias de invenções e memória (pois a memória vem carregada de invenções muitas vezes) faziam dela uma pessoa única para a idade, para a região, para o tipo de vida e os sofrimentos todos que já havia passado e que passava ainda.
Era uma grande amiga.
Outro dia, me enchi de coragem e fui visitar a sua melhor amiga. Elas eram unha e carne há trinta anos. Aprontaram juntas na juventude e era linda a cumplicidade delas.
Ela não era a mesma pessoa. A falta de mainha na vida dela era tão destruidora quanto na minha. Ficamos eu e ela a nos olhar e a saber da falta daquela mulher em nossas vidas. Não tínhamos nada a fazer. A morte é mesmo assim. Ela me disse, perdi a minha amiga. Com os olhos cheios de lágrimas. E eu respondi: eu também.
Ela deixou de fumar no enterro de minha mãe. Mas, depois, a saúde dela declinou. Era como se minha mãe fosse uma força para ela. Quatro anos depois da morte de minha mãe foi como se ela tivesse envelhecido anos. Se minha mãe tivesse viva, talvez isso não tivesse acontecido e aquela jovialidade estivesse ainda pulsando.
Elas  trocavam bilhetes engraçados. E eram irmãs, irmãs. Tia Marilene era testemunha da vida de minha mãe, do que era a mãe de minha mãe para minha mãe. Pois que elas também tinham tido uma amizade muito bonita. Mas, era uma relação muito mais tradicional de mãe-filha, muito mais diferente do que foi a nossa…

Enfim…falta. Vontade de um dedo de prosa com ela que era tão inteligente, tão viva e vivaz, tão interessante, tão envolvente, tão charmosa, tão não cansativa.
Saudades de suas invenções. Saudade de levantar no meio da noite e ela estar fazendo alguma peripécia, de eu perguntar o que era e ela desenrolar um fio de Ariadne e mais fios e fios e dali por diante evocarmos Minemosyne, Clio, Apolo….e Vênus.
A memória, a história, a arte e o amor. Foram ensinamentos que ela me deixou. E são coisas que ela ressignificava a todo momento. Eu sinto falta. Muita. Latente. Para sempre.



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