quarta-feira, 21 de julho de 2010

Vovô Zé


Ocorreram-me lembranças de meu avô Zé. Recordo agora dos dias em que me ensinava a andar de bicicleta em Estância. Lembro como ele gritava quando eu disparava em sua bicicleta de adulto, alta e pesada. Treináva-mos perto de um lugar que servia meio como um lixão em um bairro industrial da cidade. Vezenquando eu caía sobre montes de lixo e ele gritava: olha os vidros, Tiago! Tiaago! Meniiino! Eu achava tudo muito engraçado e ria. Nessa época já sofria de ausências, nessas horas não sei onde estava meu avô. E isso é estranho.


Meu avô Zé era um homem forte. Tinha sido, quando mais moço, jogador de futebol. Lembro-me que ele tinha uma caixinha de metal com um monte de coisas fascinantes dentro: um relógio de bolso, um vasinho de perfume que nunca secava em forma de coração, fotos dele e de minha avó. A caixinha ficava em baixo da cama, sempre. Às vezes fechada com um cadeadinho minúsculo.


Todos esperavam ele chegar de não sei onde para começarmos a almoçar, confesso que isso deveras me irritava, mas eram ordens da minha avó Eugênia, que usava remédios controlados. E o “deveras” peguei dele. Mas ele dizia “é de vera...” mas, era assim, devagar e comprido, “é de veeera”, com uma voz grossa e macia, admirado com alguma coisa. Sentávamos então à mesa. Ele começava a misturar toda a comida, feijão, arroz, farinha, ao mesmo tempo em que chupava uma laranja grande, que cortava com uma faquinha que ele mesmo fabricara quando trabalhava. Minha avó exigia então que rezássemos, e nós, evidentemente, obedecíamos. Eu repetia “obrigado Deus, obrigado Deus, obrigado Deus, obrigado Deus”, sem nem saber o que de fato estava fazendo, até quando minha avó começava a comer e eu, morto de fome, metia apressado o garfo no prato.


Em junho de 96, minha avó teve umas complicações cardíacas e faleceu. Em dezembro do mesmo ano meu avô teve um derrame cerebral. Ele não queria comer nada e começou a definhar. Eu ia visitá-lo e tentava animá-lo chamando-o de Seu Zé e sentando do lado dele. Dava um meio sorriso por conta da paralisia provocada pelo derrame e apertava a minha mão. Apertava de um jeito que agora lembro com o coração apertado. Que saudade que agora tá me dando de meu vovô Zé. Depois de tantos anos parece que agora percebi que perdi um amigo. Mas onde estavam essas lembranças?

Ele morreu em janeiro de 97, não lembro bem o dia. Mas não fora um dia triste. Estranho, mas não fora. Lembro que a morte não tinha o significado que agora tem pra mim, essa interrupção. O que me vem agora como estranha interrogação é: Por que em minha memória ele tinha desaparecido? Éramos amigos, ora. Dá-me certa raiva em ter que encarar essa desconsideração de minha parte. Que idiota que sou por isso. Aprendi tanta coisa besta durante todos esses anos sem meu avô Zé. Tanta coisa inútil, “sem valia” (outra expressão dele). Nunca achei que eu fosse rememorá-lo assim um dia. Porque tudo parecia estar morto, enterrado no jazigo do meu avô. Agora eu percebo que estava tudo apenas guardado. Como se dentro de um criado-mudo esquecido e invisível que a gente passa, olha, passa, se esbarra, mas que continua invisível.


Tiago de Oliveira

3 comentários:

  1. Bonito texto. É bom dar vazão à memória. Não enterrar tudo e todos. Os mínimos detalhes (tipo a caixinha de lembranças que seu vô Zé trazia com ele embaixo da cama) são tão importantes para se viver bem menos descomplicado.
    É bom não banhar tudo no rio do esquecimento. Se bem que tantas vezes é preciso esquecer para poder sobreviver, né?
    Beijos.

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  2. Foi um exercício fantástico pra mim. Que saudade absurda que deu do meu avô. Nós éramos amigos. Eu tinha esquecido disso.

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