Henrique disse a mulher ontem à noite que sofria gratuitamente do mal do transbordamento. A conversa durou horas, ela concluiu já perto de deitar que era papo furado, que o marido tentava era engabelá-la, dando uma de pirado. Não tinha sido a primeira vez que ele inventava coisas, afinal. Teve a vez das sete vidas dos felinos comprovadas pelo gato preto da vizinha. Deu ao gato veneno poderoso. Foram sete tentativas, todas falharam. Também teve a vez da botija que ele encontrou enterrada no fundo do quintal da casa dos avós, quando ele ainda era adolescente. Disse ele que só foi possível encontrá-la porque fora guiado pelo tataravô já morto há mais de 60 anos. A mulher se arrepiava com as histórias, mas no final achava sempre que não passava de invenção de uma mente fértil e criativa. Com a história do transbordamento ela teve outra percepção, tava na cara que de uma vez por todas Henrique tinha enlouquecido. Aquilo já tinha passado a léguas de todos os limites. Ontem à noite disse a ela que não era suor o que jorrava de seus poros, que às vezes sentia a pele como se a estourar, liberando água. Cansada das histórias, adormeceu. Foi quando durante a madrugada, do banheiro, ele gritou por ela pedindo socorro. Ela acordou num susto medonho. Quando apareceu à porta, os dois globos oculares do homem estavam no chão, flutuando sobre a água. Água que se vertia tórrida e caudalosa dos ocos dos olhos. A pele estava uma só bolha, uma bolha gigante como em uma grande queimadura. Mas não havia fogo em parte alguma. Só água, muita água, quente e abundante. A mulher segurou-lhe pelos braços que se desfizeram imediatamente. Pegou-lhe o tronco que logo se esvaiu em líquido incolor e inodoro. Aos poucos, sem que ela nada pudesse fazer, Henrique desapareceu no chão do banheiro. Não havia mais um dente, um fio de cabelo sequer para provar-lhe a existência. A mulher absorta rondava com os olhos todo o banheiro, depois o quarto, mas nada. Toda a água, pouco a pouco, procurou o ralo, largo e silencioso, embaixo da pia.
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