sábado, 26 de junho de 2010

O céu serve a todos, o céu ninguém pode pegar.


Há semanas desejava uma caminhada, descompromissada, só uma caminhada. E a manhã de hoje pareceu propicia. É que não chovia e eu havia baixado na internet dezenas de músicas que me fazem bem e mal, queria ouvi-las andando. Acordei um pouco mais tarde do que desejava, eu tinha que estudar depois, escrever uns artigos que me consomem há dias. Pus então uma camisa branca, uma bermuda azul-clara. Assim, escolhidas as cores, abri a porta e olhei para cima, o céu foi se revelando acinzentado. Devo ter feito uma cara neutra e fui andando. Liguei o tocadorzinho de músicas e os fones no ouvido. A cada passo uma leve vontade de rir, é que eu estava tranqüilo ouvindo a cantora que dizia que haviam apagado tudo e pintado de cinza e que no muro só havia restado tristeza e tinta fresca. Não resisti e meu largo sorriso brotou, sem reforço de forças ocultas, sem levantes mecânicos de cabeça. Comecei a pensar na semana, na minha incomunicabilidade, nos meus gestos imprecisos e atitudes completamente desconexas. O riso se energizou e quase tomou toda a minha cara. Chovia copiosamente e eu estava andando no meio do calçadão do centro comercial de Aracaju, os trabalhadores esperavam nas portas das lojas, encolhidos com seus guarda-chuvas. A cantora de voz suave dizia então que o céu amanhece com Sol e que ele serve a todos e que ninguém pode tocá-lo e que ele ia do chão para o alto. Me apressei, não por causa da chuva que mais parecia evaporar ao tocar minha pele. Queria ver a maré e a cor do entre ela e o céu. Mas ninguém pode tocá-lo, o céu, repetia a cantora. Que boa a sensação. Sem começo nem fim. É provável que já tenha entrado aqui no campo do incomunicável. E, sabem? Não estou para ser inteligível. E hoje, especialmente hoje, não vim para matar demônios, mas rir deles. Para, como diz uma das músicas de meu tocadorzinho, deitar e rolar. Eu não cansava. Uma moça desce de um ônibus e me diz uma coisa que não entendi. Lembrei que estive naquelas ruas vezes atrás, sozinho como na caminhada, à noite, ensaiando noitadas e boemia. (rio aqui, mais uma vez) Malandro. Ensaiei quando já estava na Beira Mar passos de malandro. Assim: ombros para trás, cotovelos levemente suspensos e a cada passo uma jinga, mas aí tem que ter talento. Mas essa minha pinta de menino bem nutrido estraga sempre tudo. Mas a chuva caía, e o tempo estava meio branco-acinzentado. Deixe só eu resolver sair nu por entre essas ruas, qualquer dia desses. Louco e armado de ódio. A chuva caía forte. Os carros passavam e as poças se formavam nas calçadas. Aproximava-me do manguezal, ali já chegando na Treze, esse bairro dos afortunados. A música: Quem foi que disse que é impossível ser feliz sozinho?/ Vivo tranqüilo, a liberdade é quem me faz carinho/ No meu caminho não tem pedras nem espinhos,/Eu durmo sereno e acordo com o canto dos passarinhos. Lalaia laia laia laia laia lalaia laia laia laia...Cheguei no calçadão da Treze completamente encharcado. A camisa branca revelava minha pele pálida escondida. Avistei logo um senhorzinho encolhido embaixo de uma banca de revistas fechada, sabem aquela de livros espíritas? Ele se encolhia se protegendo da chuva, não conseguia ver se ele estava de olhos fechados, a cabeça pendurada, o rosto voltado para baixo. Nos pés um saco cheio de não sei o que. Fui para o outro lado da banca, aquele instante parecia pertencer a ele. Aproveitei que ninguém via e urinei. Aliviado, olhei para dentro da banca. O vidro embaçado. Vi do outro lado que o velhinho agora tinha as mãos ajuntadas como em oração, encostadas ao peito. Será que reza? meu primeiro pensamento, mas na chuva? A chuva caía e caía a chuva, e caía. Caía como que estivesse chorando, encharcando a pele dos outros como quem não tinha mais nada o que fazer senão aquilo. Malvada, como uma mãe que ama. Naquele momento, exatamente ali, finalmente me protegendo da chuva, esperando um ônibus que voltasse para o Santo Antônio, eu comecei a rezar, para o Deus mesmo, esse silencioso que eu construí. Eu pedi ao Deus mudo que ele permitisse que o dia se ensolarasse. E dentro ônibus indo para casa, pedi a ele que atendesse também o que pedia o velhinho.

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