quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

De madrugada


E não foi fácil, num dia era homem e noutro tinha pêlos e patas imensas. A metamorfose foi num quartinho perto da zona. Tomou um café na 24 horas, leu um livro entre as meninas e o cheiro de umidade das árvores. Creio que só o Deus sabia que ele era pessoa, e que era faminto e que despertava de profunda e doentia letargia. Acabara de sair do trabalho. Como era simples! Oh Deus, como era simples! Mas existia uma realidade estranha, de uma louca existência.

- Vou lhes contar uma fábula, certo?

A caixa que o continha caiu no meio de uma avenida e era noite. A cidade calada, luzes apagadas. Fazia um calor infernal. Pêlo espesso e saliva grossa. Um mal-estar no coração do Tigre. Havia sido libertado pela imprudência do motorista que fechou demais na curva. Machucara a cabeça na queda. Um pouco de sangue molhou e secou numa parte amarela do pêlo. Ofegava, frágil, o bicho grande. Creio que vivia naquele lugar denunciado por Clarice no “Onde estivestes de noite”. Onde estivestes de noite, Tigre? Parecia jovem, o bicho, para um animal. Parecia um cara de 30 anos, viril, com toda a grosseria deliciosa de um cara de 30 anos.

Era forte, embora cansado. Tigre e cidade não dão boa combinação, o Tigre não vence.

O Tigre zanzava de noite, ninguém o percebia dentro dos ônibus. Nas ruas do centro, 1 hora da manhã, ensaiando a vida selvagem entre as prostitutas e os garotos de programa. Ele estava entre irmãos: tinha uma pantera, um lince. Tinha um leopardo sacana de genitálias enormes. E tinha cascavéis.

Mas o pobre tigre sentia mais medo do circo, que sempre fora atroz com ele.

Lembro bem de uma noite que foi ter com um dos bichos da cidade.

- Oi você me dá uma carona? (disse um deles)
- Quer ir pra onde?
- “Vamo” pra orla?

Um animal drogado, acredita?

Lá, chupou-lhe as coisas, que eram negras. Era uma pantera negra, macho e zonza. Creio que era o craque comendo-lhe as engrenagens. Que bela pantera era. Pêlos num peito com cheiro de cigarro. Vestia uma camisa preta com estampa de Bob Marley. Lábios de carne morena, patas grosseiras. Um belo exemplar. E o seu íntimo foi do Tigre por Dez Reais.

Teve que se virar depois com focas e avestruzes. Mas encontrou outro Tigre que vagava solitário.

Seus pêlos reverberavam a luz pálida da lua, no chão da jaula do novo companheiro. Como um gato em cima de uma gata, mas eram tigres. Dois tigres machos errados. Ele fez seu papel ali, poeticamente. O outro não mordia a nuca como fazem os felinos comuns, o beijava, embora o nosso Tigre desejasse também que o mordesse. E Ele não perderia A CHANCE:

- Morda minha nuca!

Ele não tinha sido o primeiro a morder-lhe a nuca. Um hipopótamo havia o feito antes, num motel de beira de estrada. Um hipopótamo desengonçado e pouco cavalheiro.

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