quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Pouso de um Unicórnio Alado

Era o meio da noite, 20:00, 20:30, cedo ainda, quando carros barulhavam as ruas e crianças assistiam TV. O meio da semana, quarta ou quinta-feira, em que encaram os homens o cume de suas sinas, em que os sonhos perigam a morte e a ávida realidade trabalha afoita, cega, arbitrária, equivocada, para que não se rematem os sonhos, como aquele que com a britadeira perfura o asfalto e que com ela perfura a alma.

Fazia calor e eu suava muito quando na esquina ele surgiu com ar de guerreiro fugitivo, trajando dourada armadura. Nas mãos espada e escudo. Corria elegante. O baque de seus pés de aço fazia tremer o chão. De onde vem? Nenhuma guarda real a zelar-lhe a vida. Nenhum cavalo, nenhum súdito, sequer um traço de coragem trazia consigo o príncipe errante solitário. Só rútilos áureos eu vi, cobrindo-lhe o medo. De onde vem? Eu quis gritar, quis falar-lhe de perto. Mas sair dali daquele jeito, ainda na primeira cerveja, tão sóbrio ainda. Mas, mais perto chegou, entendendo o mundo como nem eu mesmo. Pesada respiração. No chão, atirou a espada e o escudo, aos poucos toda a armadura. Cabelos-caracóis, negros e amarrotados, surgiram. Sentou-se à mesa, agora esquálido, pálido e apagado, vestindo farrapos de pano. Magros e brancos braços, estranhas mãos veiudas. Nos verdes e fugidios olhos, a esperança espontânea da sobrevivência.

Contou-me a estória que o trouxe. Havia um mago, ele disse, invejoso como só, que lançou-lhe um poderoso encanto, devendo ele abandonar o próprio reino para mantê-lo tal como o deixou, intocado reino de bravuras e sonhos, imponente castelo, felizes súditos e corte, viva natureza esverdeada. “Invejou-me a bravura, maldito ancião! Invejou-me a beleza, a destreza com as armas reais, as donzelas e moçoilos. No reino tudo deixei. Permitiu-me somente o unicórnio real para comigo galopar no universo. Passear entre mundos e reinos, com a condição de que para lá nunca mais voltasse. E o traje real, para proteger-me dos dragões que pudesse vir a encontrar. Quis o mago que eu vagasse vivo, por toda a eternidade, galopando solidão.” O unicórnio onde está, perguntei? “Escondido entre as árvores da floresta a alguns passos daqui - referindo-se ao parque municipal a uma quadra dali. Imaginei o quão estúpida era a conversa. Mais do que óbvio era de uma festa a fantasia que saía ou de desfile com carros alegóricos. Mas não. Não podia ser. Nem carnaval era.

Leve-me ao unicórnio - exigi. Se para alguma coisa quiser minha ajuda, terei que vê-lo. Prometi alimento. Estava faminto, assim não hesitou. Aqui está – disse-me apontando um imenso cavalo azul-celeste de asas brancas, com brilhante chifre de marfim. Montamo-lo o príncipe e eu. Com um impulso, sobrevoávamos as árvores e os prédios. De cima, a velha sensação de tudo parecer tão minúsculo. Não demoramos a chegar a minha casa. Dei-lhe o que comer e foi embora logo em seguida.

Noites e noites visitou-me o príncipe. Perfumei a casa em todas elas. Ouvia primeiro o trotar dos cascos e depois se cobria de azul o meu quarto iluminado pelo brilho azulado dos pêlos de seu unicórnio. Solidão, o que era?

Disse-me que não mais só estava ao meu lado. Prometeu-me um presente e, numa dessas noites, mais intenso fez-se o brilho azul em sua chegada. Numa de minhas viagens retornei ao reino dos unicórnios – disse-me tomado por estranha alegria. E comendo as gramas de meu jardim, havia outro imenso unicórnio alado, azul e iluminado. Dali, para onde eu iria? Acariciei os pêlos, nas palmas das mãos senti a aquecida baforada do encantado animal. Montei-lhe destemido. Montei-lhe como se há muito lhe fosse íntimo. Quando firme segurei sua crina, pôs-se a flutuar e, depois, a saltar do nada para o nada. Brincava? Mas fiz meu domínio e galopei sobre as estrelas, sobre as nuvens, que azuis se mostram quando as olhamos de cima.

2 comentários:

  1. Eu tô na lan, vou ler com calma e comentariei depois. Mas,antes: que bom que voltastes a escrever. Estava a sentir falta. Bjs!

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  2. Que bom te ver escrevendo outra vez ...e esse conto...Me deixou sem palavras Tiago!!

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