domingo, 24 de outubro de 2010

"Ok, Cláudia, senta aí" ou Novo uso para velhas coisas


Farei novo uso para velhas coisas. É alternativa melhor para o suporte da vida, não é? Essa tal de resignificação. Me parece melhor, ao menos, que usar drogas, ou não? Sou no mínimo mais esperto. Começarei, pois, com esse lápis aqui. Vou metê-lo olho esquerdo a dentro, já não serve para nada mesmo. Mas farei no fim desse que pretende ser o conto de minha salvação. Vejamos. Todos esses livros na estante: Crime e Castigo, na falta de um travesseiro; os de Bukowski, querido amigo imaginário, toda a coleção, jogo completo de porta-copos, os da Hildinha, deixe-me ver, lálálá... já sei, cada página, a cada punheta melequenta, guardanapos finíssimos. Os da Woolf, dei todos, menos uma preocupação. Deus do Céu! Clarice...bem,... volto já já aos livros. A cama será sofá na cozinha, o porteiro do prédio meu escravo sexual roludo, meu namorado para gozar-me na boca, logo, a boca para chupar gala. Ok, para isso sempre fora, para beijar bocetinhas, então. Argh!

O que está escrevendo, ô Beto?

Conto. E que interesse é esse agora?

Depois que passou a freqüentar psiquiatra, filhinho, tenho que cuidar melhor de ti.

Hahan

E esse desenho? Você quem fez?

Foi?

Posso ver?

É melhor não, mãe.

Por quê?

A senhora não vai gostar.

Cê bobo, menino.

Mãe, não! Vai ver Tv, vai.

Beto, o que você desenhou?

Beto vira o desenho tentando esconder. Mas ela o toma, quase o rasgando. Olhos arregalados, boca tapada com as mãos.

O que fizemos com você, Beto?

Que bobagem, puta que pariu, deixe de exagero, mãe. Parece que matei alguém. Um desenho e só. Nunca fui de pouca viadagem, ora! - O desenho: grande e psicodélica rola cabeçuda.

Matou-nos, a mim e a seu pai.

“Ok, Cláudia, senta aí”, vamos conversar. – era sua frase irônica. A mãe, enfurecida e magoada, bate a porta do quarto do garoto.

Beto pensa alto: peguei pesado, mas será que nem a isso tenho direito? De magoar em causa própria? Pro inferno essa preocupação, mas... voltando ao novo uso para velhas coisas...O vinho agora para matar a fome do mundo...

E o tal conto que Beto escrevia não teve fim. Continua ainda a escrever. É que além do novo uso para velhas coisas, vieram também novos medos para velhas coisas. O primeiro medo foi de enfiar o lápis no olho esquerdo que já nem servia para nada mesmo. Tão novo, e já de mal irreversível na visão.

3 comentários:

  1. E, por mais que a gente prepare os interlocutores para estes novos usos, volta e meia acontece o que tu aqui descrevesse: incompreensão e retroalimentação de uma timidez (in)expressiva!

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  2. Com o passar dos anos, acho que menos me preocupo com os interlocutores, embora talvez pareça falácia de minha parte, mas é que é algo que vem aos poucos. Isso da retroalimentação da timidez, diria que é a retroalimentação de um cataclisma para o bem ou para o mal, ou para os dois. É tempo de resignificação para os dois, prefiro pensar assim.

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  3. "Sou no mínimo mais esperto" hahhahaha!

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