sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Odores

"A noite, eu Ariana, preparando aroma e corpo".

Não lhe saía da cabeça os tais versos.
Segurou o copo com força. Pensou que se o quebrasse, ao menos o sangue…o sangue viria à tona. E precisava bastante de erupções.
Segurou, então, com muita força e nada rompia ali: nem noite, nem copo, nem alguma figura fantasmática pela porta.
Nenhuma palavra rompia aquele silêncio. Então decidiu gritar.
Gritou para dentro mesmo de si. E descobriu que não havia silêncio porra nenhuma. Ela tagarelara a noite inteira. Sua mente não fez silêncio para o dentro de si dela. E agora, aquela de palavras a romperem silêncios!
O silêncio é o caralho!
O copo rachou o espelho e não se partira.
Bom o material, concluiu. Caíra fofo no tapete. E ela bipartida, com a cara deformada, no espelho era uma figura patética.
Era melhor pegar um livro, fingir que nada aconteceu, limpar a cara torta pelos tantos copos de wiski barato e esperá-lo.

O que rompeu foi o dia: bem na cara dela o sol parecia de meio-dia.
Sentiu que esteve só o tempo todo. Tudo igual: espelho, copo no tapete que molhara e secara deixando um cheiro de álcool estragado. Como se pudesse álcool estragar, apodrecer…

O que apodreceu ali?

Tomou um táxi. Mas, o cheiro, o cheiro a acompanhava.

P.S.: A tela é "Mulher ao espelho", de Pablo Picasso e o verso é de Hilda Hilst.

4 comentários:

  1. São seis e nove da manhã. Acordei às 3 com Jadson acordando para viajar. Acabei de ver um filme: Nome Próprio. Acabei de ler seu conto. E agora, nesse momento, lembro do "constituir-se" que me disse dentro do ônibus, lembrei sem fazer conexões com nada do que agora acontece. Olho para o ap vazio, monte de roupa suja num canto do quarto que durmo: nada a ver, certamente, com o que disse sobre "constituir-se". Mas, devo dizer-lhe agora, o que calado dentro do ônibus, não me veio sequer em pensamento: não quero constiuir-me, não agora, é que quando o fizer, terei morrido. Agora preciso viver. Simples como tudo dentro do ônibus que é quando não estou dentro dele. É que agora estou me permitindo espraiar-me, sabe? Não estou me liquefazendo, nem me fundidndo a nada, tampouco me estruturando. Estou simplesmente vivendo, coisa que, morto, é impossível, entendeu?

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  2. A chuva está chegando. Disse ela em murmúrios, sem que alguém pudesse ouvir. Medo que a chamassem de louca. Estavam todos reunidos. Bebiam e conversavam. Repetiu como se a contar um segredo sórdido às orelhas do vento: a chuva está chegando. Ouviu o tilintar das taças e o comprimir das gargantas. Notou apreensiva, misturando-se ao doce aroma do vinho, um insuportável odor de lama.

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