quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Marcela ou As duas amantes


Poderia ter dado para a Martha ou para Júlia.
Poderia ter dado para qualquer outra ali da rua, da escola, das aulas de música. Tanto olhava as meninas com os baixos entre as pernas, nas aulas, que se perdia entre as partituras e os pensamentos.
Imaginava o baixo como o amante daquela que era a menina mais bonita da turma e a mais fútil também. Loura e distante. Com amantes mais velhos, todos sabiam naquele conservatório.
Era isso: ela decidira só olhar de longe, vez ou outra, as mulheres e seus amantes. Decidira ficar pacata, tornar-se invisível. Temia tocar no corpo de uma outra mulher. Sabia que ela mesma era para ela um segredo e, portanto, não suportaria o segredo de mais ninguém.
A música e o cigarro eram a sua fuga. Gostava de ver a fumaça distanciar-se no ar. E aprendera a fazer bolinhas e alguns outros desenhos com a fumaça.
E foi com uma dessas baforadas, no intervalo de suas aulas, que conheceu Marcela.
Conversaram. Tomaram coca-cola juntas e dividiram cigarro e fumaças.
Riam. Trocavam confidências. Leia-se: Marcela falava de si, ainda que tentasse incansavelmente arrancar-lhe os mistérios. A outra, ouvia, calada que era, a dona de um segredo.
Marcela falava de tudo. De música e de amores. De tristezas passadas e da fé no futuro. Mas, parecia não ter força o suficiente. Porém, sorria como que iluminando o rosto da amiga.
E então ela pensava: não posso desejar Marcela.
Aprendera, mesmo sem ter sido educada nos moldes católicos, a repreender muito do que sentia. Era a sua forma de guardar seu segredo.

As aulas terminaram para ela e continuariam para Marcela.
Houve um concerto para a festa de formatura. Bebidas, cheiros, cores. E a despedida. Despediu-se de todas as outras com o olhar. A loura estava magnífica e nem olhara para ela.
De Marcela, despediu-se com um abraço e um cigarro dividido do lado de fora da festa.
Saiu mais cedo e nunca mais vira Marcela.

Anos se passaram. Vivia de música, agora como professora e morava num minúsculo apartamento no centro de uma grande cidade. E,  numa madrugada insone, ligou a televisão e afastou-se da sala.
Ouviu uma voz singular. Suave, cristalina…clara, clara e reconhecível… Voltou para a sala e vira Marcela.
Marcela estava magra como sempre e com um sorriso que iluminava, como sempre.
Ela olhou fixamente para a TV. Não acreditava que Marcela terminaria a música. Marcela demonstrava a mesma falta de força de sempre. Não conseguiria.
E sentou-se, inquieta.
Marcela foi tomando força, foi cantando cada vez mais firme. O piano, suave, gostoso de se ouvir. Marcela cantava forte, bonito, iluminado.
Então, ela abriu suas pernas, encontrou o seu sexo e ao fim da música, gozou com Marcela.

Poderia ter dado para Martha ou para Júlia. Para qualquer uma ali da rua, da escola, das aulas de música. Mas, deu para uma que ela não sabe ainda quem é. Conheceram-se depois que ela vira Marcela na TV. Conheceram-se durante um intervalo de aula, entre baforadas de cigarros e coca-cola. Esse rosto também ilumina quando sorri.

E agora pensa que, sem querer, Marcela lhe desvendara o segredo de uma vida quase inteira.
 
P.S.: A gravura é de João Werner e se chama "As duas amantes".

3 comentários:

  1. "O segredo de uma vida quase inteira." Matou um pedaço da saudade de nossas leituras rsrsrs

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  2. O conto parece um recorte como uma fotografia que traduz encontros e desencontros. A Outra encanta por seus desejos secretos, mas despertos.

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