segunda-feira, 19 de julho de 2010

José

Para Jadson com carinho


Fechou o bloquinho de notas, tirou a roupa para o banho e no espelho, o corpo era um grande terreno abandonado, desabitado, árido, um vasto pasto de barro nu, morada de minhocas. A calça jeans, a blusa branca de botão, uma tragada no cigarro e uma golada no café, sem leite, pouco açúcar. Fechou as janelas e esperou apontar o ônibus na esquina. Girou a chave, abriu a porta, trancou-a. Abriu-a novamente, entrou e a fechou. Jogou no chão a mochila com suas coisas e seus livros. Jogou-se no sofá, cansado. Palavra nenhuma, muitas já dissera. Neutralidade nos lábios, morno olhar, coração palpitante, resfôlegos. Cansado. Cansado. A ânsia era de deitar-se no vão gélido de sua sala de estar. Na escrivaninha, uma garrafa de vinho, duas carteiras de cigarros vazias, um tequinho de maconha mal embalado, cheio demais, pesado demais. Uma lembrança da conversa alcoolizada da madrugada. Um monólogo. Um ensaio discursivo acerca de que mesmo? O vômito enchendo-lhe a boca era incapaz de movê-lo daquele sofá. A porta de seu quarto entreaberta, sapatos empoeirados embaixo do guarda-roupa, baratas emergindo do colchão velho submersas entre as espumas secas e encardidas. Masturbações. Sua gala seca espraiava-se sobre os lençóis em uma agrura só. Amarronzada.

Ele precisava voltar para a cama, para o colchão mal cheiroso. Despiu-se. A calça e a blusa sobre a poltrona. A cueca no chão. Uma punheta rápida. O ônibus barulhento virando a esquina. O gozo de José se misturando à poeira do tempo. O tempo se derretendo no relógio de parede. A vida amorfa mofada sobre a cama.

Um mal estar ruborizou-lhe a cara. Sensação de mar bravio inundando-lhe o estômago. Algo errado. Um ponto e uma vírgula. Um calafrio. Um arrepio de pancada. Correu para o banheiro porque próximo estava o fim. O vômito grosso pela boca, a merda aguada pelo cu. Tropeçou nos livros e caiu com boca num baque seco sobre a latrina. Uma veia grossa e solitária no plexo. Esverdeada. Um esforço, mas nada. Nem vômito, nem nada. Uma coisa de dentro mastigava-lhe. Suspendeu-se num repente. Correu à cozinha. Os remédios no armário. Deveria haver algum. Algum serviria. Estavam ali todos para servi-lo. Para a enxaqueca, para a garganta, para a alergia à poeira, para as manhãs de ressaca, para as noites de insônia. Mas aquilo. Temia pela estranha sensação. Aquilo era estranho. Parecia que enfim enlouquecera, e que de suas entranhas rompiam-se casulos.

De um segundo para o outro o mundo calou-se. As xícaras, os pratos sujos na pia, a gota que pingava, o motor da velha geladeira, os sofás na sala, o colchão e as baratas. A mais calada voz. A mudez hermética de um mundo sem dinâmica.

O corte veio da faquinha de cozinha. Uma faquinha de dentes. Usou-a como nunca a havia usado, com firmeza nova, para abrir-lhe o pé da própria barriga. Acocorou-se ao lado da máquina de lavar e pôs-se a dar-lhe o segundo corte, um outro sobre o anterior, cavando assim, com cuidado, as camadas da pele. Os instantes que se sucediam não eram mais os mesmos como sempre assim foram. Rasgavam-lhe agora com força nova os minutos. Aquela manhã revelava-se em sangue e vida. Estava a parir sozinho acocorado entre o fogão e a máquina de lavar. Uma cesariana de tempo e sangue. Não agüentou o peso e desfaleceu sobre o chão inundado do vermelho. Da boca, uma centena de baratas em marcha enfurecida seguiu subindo as paredes e desapareceu em um buraco escuro atrás do fogão. De olhos ainda abertos observava as moscas que pousavam no sangue. Nunca havia se sentido tão plenamente vivo, ali lambendo com as moscas o próprio sangue. Vivo. Sugando do chão o próprio sangue. Vivo. Lanhando a língua na faca.

Apoiando as mãos na parede foi se erguendo. Enchendo-se de fluido novo.

Atravessou a sala ereto (pisava firme no chão). Chupou o ar para os pulmões. Catou a calça e a blusa.

Sujo de sangue, vestiu-se e foi trabalhar.

3 comentários:

  1. Nossa Tiago, que leitura de mim........

    emocionado beijos
    Jt

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  2. Caralho. Texto do caralho. Metáforas agudas, com cores vivas, carmim, vermelho, explosões. Explosões e fineza, sutileza, silenciamentos que precisam de facas para falar. É sim uma leitura de Jadon, de nosso Jadon. E é uma leitura de todos nós irmanados na mesma loucura de baratas por dentro. Todos nós tão necessitados de corte de faca de cozinha. De novos usos de antigos objetos.
    Lemos sangrando o texto-homenagem.
    Amo-os. Fato.

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  3. Saudade absurda de escrevermos novamente, de Lê-los. Coisa que para mim nunca foi fácil, mas sabe o lance do sentimento... Lembro com carinho das leituras, das nossas vozes dizendo as palavras no tom certo.

    beijo,
    saudades imensas disso.
    t.

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