quarta-feira, 12 de maio de 2010

Passeios de bicicleta e Insônia


"O narrador conta o que ele extrai da experiência - sua própria ou aquela contada por outros. E, de volta, ele a torna experiência daqueles que ouvem a sua história"
Walter Benjamin



"Na realidade, não há percepção que não esteja impregnada de lembranças"
Henri Bérgson



Noite dessas, com a sempre insônia que me tem acometido, em lugar de ficar nervosa e levantar da cama para ler, ouvir música, escrever, assistir a um filme ou mesmo caminhar pelo apartamento ou ficar na janela olhando a rua, decidi fazer um passeio. Um passeio imaginário. Decidi rememorar alguns passeios de bicicleta que eu fazia na cidade de minha meninice. Fechei os olhos, visualizei a bicicleta, a casa, na rua da Frente e pensei: "Às vezes que eu ia para o lado esquerdo, eu fazia assim...". E fui refazendo os caminhos, passando pelas pessoas, pelas casas das pessoas... Aqui é a casa de Djanete, tem a casa de Jotinha, o canteiro de Noêmia, passei por Jorge, cheguei à ponte da adultora. Resolvi voltar, passar por onde já havia passado, passar reto da minha casa e ir para o lado direito. Passei pela lanchonete de Baixinho, entrei e contornei o Relógio, segui a rua da Frente, passei pela farmácia Tavares e seguindo, cheguei ao Beira Rio, aqui eu poderia ver a lanchonete do paio do primeiro garoto de quem gostei ou ver, saindo do rio, de ter tomado banho no rio, o garoto que também gostei e que morreu, mas não os vi a nenhum dos dois, apenas segui. Fui mais adiante e no fim da rua da Frente, dobrei uma esquina e voltei pela rua da Palma. Aqui, aconteceu algo incrível! Pararam as minhas recordações. Entraram as recordações de minha mãe. Eu já não estava mais de bicicleta. Estávamos as duas, mãos dadas, eu a escutá-la. Ela falava do que e de como era a rua da Palma da infância dela (como em tantas das nossas conversas quando por ali passávamos juntas).
As bordadeiras nas portas, em fins de tardes muito bonitos. Até os homens bordavam. E caminhamos com ela falando para mim de suas recordações, das procissões, das festas de Bom Jesus... Entravam depois os anos de ditadura, ela adolescente, as músicas, os livros...E como eu gostava de ouvir tudo aquilo!

De repente, eu pensei nas histórias dos personagens de Bosi. Do livro Memória e sociedade - lembranças de velhos, da Ecela Bosi.

As histórias dos personagens de Bosi mostram que a função social exercida durante a vida ocupa parte significativa da memória dos velhos, e isso não ocorre por acaso. A memória, na velhice, é uma construção de pessoas agora envelhecidas que já trabalharam. Assim, é uma narrativa de homens e mulheres que já não são mais membros ativos da sociedade, mas que já foram. Isso significa que os velhos, apesar de não serem mais propulsores da vida presente de seu grupo social, têm uma nova função social: lembrar e contar para os mais jovens a sua história, de onde eles vieram, o que fizeram e aprenderam. Na velhice, as pessoas tornam-se a memória da família, do grupo, da sociedade.

O homem jovem e ativo, em geral, não se ocupa com lembranças - não tem tempo para isso. Dos jovens, a sociedade espera produção, e muitas vezes não se dá conta da violência implícita nesse processo. Produção nas indústrias, nas minas de carvão, produção de conhecimento - muita produção. Dos velhos, não. Deles, espera-se a lembrança. Mas quando não se valoriza essa função social, como acontece mais correntemente, há um esvaziamento e uma desvalorização dessa nova etapa da vida.

Mas não é só o tempo "socialmente permitido" que os velhos têm para se dedicar às suas lembranças. Bosi, em seu livro, lembra que os velhos têm uma memória social atual mais contextualizada e definida, pois são expectadores de um quadro já finalizado e bem delineado no tempo. Aos mais jovens, ainda absorvidos nas lutas e contradições de um presente que os solicita intensamente, falta experiência para lidar com as lembranças.

A relação estreita entre memória e trabalho mostrada por Bosi em seu livro, feita pela análise das vidas de seus personagens, e a constatação de que a função social da velhice, nem sempre reconhecida, não deveria ser perdida. A autora vê e mostra os velhos com afeto e compreensão e, ao final do livro, já não separa as suas próprias memórias das memórias de seus personagens. Ao contrário de outras publicações do tipo, não coloca os velhos em uma situação passiva, pois enquanto eles lembram, eles ainda "fazem".

O final do livro é afetuoso e valoriza o trabalho como ponto central da memória dos velhos: "A memória do trabalho é o sentido, é a justificação de toda uma biografia. Quando o Sr. Amadeu [um dos velhos que é personagem] fecha a história de sua vida, qual o conselho que dá? De tolerância para com os velhos, tolerância mesmo com aqueles que se transviaram na juventude: Eles também trabalharam".

Quando chegamos, ao topo da rua da Palma (que é uma ladeira disfaçada, "fingida" diria um amigo) em frente à praça do Pirulito ou da Catedral, dormi. Não sonhei com minha mãe, nem com a cidade. Acordei lembrando de que quando eu era bem menor que a Nina das lembranças que decidi evocar por conta da insônia, quando não conseguia dormir, minha mãe cantava para mim. Ela mesma já não recordava mais as cantigas de ninar e cantava Luiz Gonzaga (ela mesma pedia que não pedissem explicações para tal fato). Ríamos. E eu: dormia.

3 comentários:

  1. Nina que texto lindo esse, nossa fiquei emocionado! eu sempre fico encantado com suas memorias, sempre....

    beijos
    Saudades
    J.

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  2. Nega, que lindo mesmo...
    Acho que Jadson e eu já não contamos
    para dizer o quanto emociona sua escrita rsrsrs
    somos apaixonados e (ponto).

    Imaginei, emocionado, cada lembrança tua.
    xeru.

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  3. Pessoas amadas!Eu doía insanamente por esses tempos!Mas, escrever: salva! (não, não é função terapeutica não. Mas, sei que vocês sabem). Bjs, saudades tbm.

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