sábado, 8 de maio de 2010

Loucura pouca para mim é bobagem.

Não estando enganada eu, há um refrão de música de Os mutantes que diz algo do gênero: “Loucura pouca para mim é bobagem”.
Pois é. Loucura pouca para mim também é bobagem.
Quem sabe lidar com a loucura? Com a loucura dos outros?
É Cult assistir a filmes “densos”, que abordam o limiar da loucura, personagens desequilibrados, tristes e felizes ao mesmo tempo, que quebram tudo no apartamento quando recebem a notícia da morte de um irmão querido ou que simplesmente sofrem e, em algum momento, expressam isso, cobram de maneira exacerbada seu quinhão em mundo tão excludente e opressor e o cobram assim, de repente, do nada, na verdade: nunca do nada, do nada para os demais, claro.
Na Literatura, a composição de personagens assim é dita “complexa”, “marginal”, “inovadora da linguagem”.
Mas, quem sabe mesmo lidar com a loucura dos outros?
É moda ser excêntrico, as idiossincrasias – em sua grande parte inventadas e teatralizadas, como no Cinema, na Literatura, no Teatro – são comentadas e montadas com toda a acuidade intelectualóide possível e as pessoas se julgam loucas e gostam disso. E ser louco é um barato. É ser diferente. É ser esquisito, extravagante, distante de uma maioria tão normal e normatizada socialmente. Geralmente essas pessoas que se dizem díspares leram a História da Loucura e sabem de cor todo o discurso acerca da discriminação contra os párias da sociedade, os loucos. Essa é uma conversa, um discurso para se defender e repetir veementemente em bares da vida junto aos outros amigos que se dizem “nada normais” e. O discurso da diferença. Essas pessoas sabem lidar com a diferença quando não academicamente falando?
Engraçado é ver essas criaturas encontrando um louco em sua frente. Se o louco é pobre, sabemos que será tratado do mesmo jeito que todos tratam ou, no mínimo, com indiferença. Se o louco é rico, idem. Se o doido é de sua família, sabemos também como a coisa é acordada – às vezes com um carinho envergonhado. Se o louco é seu amigo? Como funciona? É senso comum o tratamento: “Ah, mas é um doido!”. Isso pode ser lido como: “Ah, ele é genial!” ou “Ah, não merece crédito!” e muitas outras traduções contraditórias e diferentes entre si existem para tal caracterização-denominação. Compreende-se muito pela entonação e pelos gestos – os cúmplices da comunicação, os sinais que ajudam a compor a mensagem, a expressá-la melhor. Mas, se o amigo enlouquece de verdade, mesmo que momentaneamente, o que acontece?
Imaginemos essas criaturas excêntricas e diferentes, descoladas assistindo a uma pessoa enlouquecendo aos poucos. Perdendo a razão, essa coisa do socialmente composto que os descolados criticam existir.
É cômico. Esses excêntricos se assustam. Não sabem o que fazer. Distanciam-se. Incomodam-se. Levantam-se. Vão embora. Brigam. Riem. Julgam. Esquecem-se de Foucault. Esquecem-se a História da Loucura. Esquecem-se do discurso último da mesa do bar. Esquecem-se dos tantos filmes com pessoas desequilibradas e dos tantos livros de marginais e personagens densos. Esquecem-se e agem de acordo com aqueles que clamam por um comportamento “sociavelmente” aceito. O desequilíbrio desestabiliza-os. Logo a eles os loucos, leitores e “vedores” de filmes e livros tão incomuns.
A loucura para essas pessoas não é vista. É invisível. Eles não pensam sobre o que é a loucura. A loucura para eles é uma representação. Assim como nas artes, a loucura na vida deles também é a representação de um papel. Mas, coloque-se um louco, um excêntrico, um díspar, uma pessoa densa, que sinta muito o mundo e expresse isso de maneira intensa, que se entregue a viver nessa linha tênue tão elogiada nos filmes e nos livros perto deles e eles pasmam. Eles não agem. Não inter-agem. Desejam logo a normatividade criticada, eles sentem falta do normal, do coeso. E aí o corte, a expulsão dos loucos da sociedade.
Já ouvi de uma pessoa – enquadrada nesse tipo “excêntrico” da moda – perguntar a outro: “Mas, o que é a consciência de si? O que é ser louco? A loucura tem um lugar, quem julga quem é louco ou quem não é?”. Isso, na hora, me fez lembrar-me de O alienista, de Machado de Assis. Já vi essa mesma pessoa, embaraçada diante da demonstração de um sentimento denso, embaraçada diante de uma pessoa que teve alterado inesperadamente o comportamento, e pareceu insana. O defensor de que a loucura era algo construído socialmente comportou-se como todos os que julgam que ser louco é berrar, é alterar-se do nada, etc., etc., como todos nós sabemos: como a força dominante classifica o louco.
Tem-se medo do louco. Tem-se asco do louco. Especialmente, cobra-se do louco que não esteja louco e que se comporte normativamente. Ou tem-se muito cuidado com o louco e trata-o de maneira a desejar agradá-lo para que se acalme (outra representação que comumente beira o sarcasmo e a posição superior de “olha só como se trata louco”). Não se diz: é mesmo, você tem razão. Loucura é perder a razão. Mesmo que essas pessoas descoladas que leram a História da Loucura na universidade digam o contrário na mesa do bar. Mas, não seguem o discurso que repetem, sem acreditar, na vida real, na prática. Na prática, acabam agindo igual às pessoas que tanto criticam, embasadas, embasadas não, repetidoras de discursos que se tornam.
No lugar onde o fato ocorreu, nenhum excêntrico soube compreender os atos de uma pessoa que parecia estar louca, agindo de maneira estranha, de verdade, sem a teatralização costumeira. E o incômodo, o conflito foi gerado. Comentários, os mais senso-comunais possíveis foram feitos. Não souberam tratar essa pessoa de igual para igual.
A loucura só é bonita nas artes.
E falo de toda e de qualquer loucura. Pois elas são classificáveis e mensuráveis também, além de existir a loucura que tem sua razão de ser e a que é do nada, uma loucura louca (risos, velho!Mas, é o que sempre acontece: as pessoas excêntricas da moda precisam de explicações). Para o letrista da música, pouca loucura é bobagem. Comecei a escrever falando que para mim também loucura pouca é bobagem.
Não falo desses loucos de representação. Falo dos outros, dos excluídos até do mundo desses excêntricos montados.
Cresci numa cidade onde havia muitos loucos. Em sua maioria, pobres. Desses que andam nas ruas, que se mijam e se cagam e fedem e bebem cachaça nos botecos e têm apelidos que os enerva e que a população quando queria se divertir, repetia e corria das reações do louco e, agora, nervoso por conta da repetição do que lhe desestabilizava. Na verdade, a população do lugar onde cresci fazia isso com os loucos, com “os viado” – era assim que chamavam homens que optavam por gostar e estar amorosamente, sexualmente com outros homens e que não só faziam a tal opção, como a explicitavam e decidiam afeminar-se: para quê opção mais louca, insana que desejar aproximar-se de ser como uma mulher? (deveriam pensar assim) – com os velhos, com as crianças, com os bêbados, com os “aleijados” (outra denominação preconceituosa). As mulheres sofriam outro tipo de opressão, mais velada e mais privada (afinal é o mundo delas, não é? O da casa e o do silenciamento), porém nunca menos cruel.
Também cresci junto a algumas pessoas que foram acometidas pela depressão – doença da moda, doença dos tempos modernos (pós-modernos??? – eu acho graça! Existir a pós-modernidade quando ainda se vive, na prática, isso de nem saber lidar com loucos, velhos, com as crianças, com as diferenças mais “comuns”).
E aprendi, especialmente, com uma que não era louca nem nunca foi a psicólogo ou psiquiatra, mas que sofria por ser extremamente sensível e que por esse motivo construiu seu “sótão” para melhor suportar a vida com suas máscaras e representações mentirosas e chinfrins. Essa pessoa aprendeu a lidar sozinha com suas tristezas e alegrias, com sua vida pulsando intensamente e a levando a altos e baixos e a explosões. Isolou-se sem que tal isolamento fosse percebido. Entendeu a questão da exclusão não explícita. Essa pessoa não era normatizada, mas calava, disfarçava isso. Sabia o que lhe aconteceria se se mostrasse. Essa pessoa sabia das reações dos descolados e discursadores de bar, inclusive.
Estive muito perto dessa pessoa. O suficiente para compreender que lidar com a loucura dos outros, a loucura de verdade, com a pessoa que sofre com o não-encaixe às regras do sistema, falo de qualquer sistema, a agonia crescente, latente, a opressão, a vontade de gritar, de berrar “chega”, “chega de insistências nefastas, de olhares reprovadores, de conduções escusas e de tanta negação, tanta podação”, lidar com a loucura dos outros é algo difícil, que exige que acreditemos nos discursos que repetimos – o dos acadêmicos que lemos, o dos filmes a que assistimos e o dos livros que lemos tão admirados, se desejamos realmente não julgar, optar pela excentricidade.
Tudo o que escrevi, até agora, nesse texto, percebo: é insignificante, desconexo, desenfreado. O que estou a defender? Eu conversei com loucos e compreendi a loucura deles. Não sentia medo, enxergava ali, em meio a tantas “incoerências” (em relação ao discurso oficial do que é ser bom da cabeça) ditas, a revolta de estar no mundo da maneira que estavam – era tamanho absurdo o que se cobrava das pessoas, pensava eu, que elas não agüentam, rebentam, gritam, “perdem a razão”(a razão do mundo que os oprimiam, que os adoeciam). A loucura era um grito, era uma fuga.
Eu não via os loucos da cidade de minha infância “azoarem” (apelidar, “mexer”, desestabilizar) uns com os outros. Eram sempre os normais que se divertiam com tal “brincadeira”. Esses que se divertiam, lógico, eram julgados (como estou a fazer aqui) pelas pessoas normais e diferentes (descoladas, excêntricas, distantes dos demais normatizados) que encaram a loucura do ponto de vista conceitual mais humano, que clamavam por uma não exclusão dos loucos, mas que os viam com a mesma distância que os demais, só que eram politicamente corretos.
A loucura é um tema difícil.
Mas, para mim e para muita gente, se for pouca: é bobagem.
Cansada da normatização, estou eu. Cansada da normatização até desses excêntricos de mentira, esses díspares da moda, das universidades, dos botecos e da leitura rasa da História da Loucura e da loucura mesmo, da loucura viva, real, que pode acometer – e acomete mesmo – qualquer um e até mesmo esses excêntricos de mentirinha, de prédio de cidade grande, admiradores de arte densa, de personagens complexos e que não sabem lidar, senão com a normatividade.

Um comentário:

  1. Ei xuxu, loucura pouca... loucura pouca...
    Que loucura pouca o que??? louco não é pouco, louco é muito e nada.
    Vamos viver o prazer de podermos comer e viajar...vivaaaaaaaa! ÊÊÊÊÊ!!!
    Xeru e meu irmããããããoo faltou Tati.

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