quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Experiência

A casa era cheia de tintas, cores, pincéis, o cheiro do tiner, forte, quase desmaiador e depois gostoso de se sentir no costume da tontura.
Tinha um paninho, onde a mãe limpava os pincéis, e de tantas cores e de tão colorido, era sujo, sem forma, abstrato.
Criança, a menina pegava as caixas de tintas da mãe e ia brincar. Era a noite, a hora em que a mãe não pintava, pois usava óculos, sentia "as vistas ruins". Então, pegava as caixas de tintas e ia brincar. Separava as cores que achava femininas e as cores que achava masculinas. Tinha os pares, os casais, com tal separação. Brincava de família, de casinha com as tintas. Nomeava-as. Brenda, Paula, Tony, Ken (o marido da Bárbie), mas nunca ousou chamar alguma delas de Bárbie.
Depois, tinham as linhas, os muitos novelos de linhas, de tantas cores, as agulhas. A de bordar, a de fazer crochê, a de fazer tricô. Umas bonitas, misturadas. Faziam um trançado bonito.
Tinhas os desenhos, os debuxos, como chamava a mãe. As formas, os moldes, para a pintura de modo vazado.
A menina era acostumada com isso das mãos. Pois a mãe trabalhara fora por muitos anos. E quando veio a aposentadoria, dedicou-se a trabalhos manuais.
A casa, então, era colorida, bagunçada de panos, tintas, linhas, agulhas, pincéis, vidros, telas. Um campo aberto e visual e olfativo para a imaginação.
Mas, as tardes eram muito gostosas. Tinham cheiro de bolo ou de biscoitos assando no forno. Chá. Café. Conversa boa. Os olhos por cima dos óculos.
A mãe também escrevia. Fazia perfume. Misturava essências. Pintava panos e fazia capas de cadernos. Cadernos para receitas como picles, compota de maçã, doce de vidro (de mamão verde). Tomate seco.
Cadernos para poesias. Os segredos dos diários. Os azedantes cadernos de contabilidade. E o saudoso caderno-com-a-mamãe onde fora a menina alfabetizada entre carinhos e carões. entre muitas teimosias também.
E iam assim passando os dias entre trabalhos manuais, contabilidades, receitas, cheiros de comidas, conversas e lições escolares.
E tinham os filmes. As fitas. Assistiam a muitas fitas. E a mãe falava de outras tantas de antigamente.
Antigamente era uma palavra que estava se tornando recorrente com o passar dos anos: a mãe dizia estar envelhecendo.
Mas, aquela mãe-mulher também adorava os cheiros das flores. E comprava muitas sementes para semear no quintal. E dava certo!
Tinham couve-folha, coentro, tomate, cebola, manjericão para macarrão cheirinho bem ali no fundo da casa onde moravam. Tinham as folhas para os chás. Cidreira. Tinham rosas. Jasmim. Cheirava, cheirava os jasmins de manhã, a menina, logo cedo com seu doce cheiro doce.
Eram dias tranqüilos quando o eram para ser e intranqüilos quando também o eram para ser.
Experimentavam fazer de tudo. Faziam receita para fazer queijo cremoso. E comiam com pão. Levavam para os vizinhos.
Tentavam fazer talco, detergente. Depois riam das tentativas e das quantidades exageradas. Mas, não cabia presentear os vizinhos com talco ou com detergente.
Era uma casa cheia de cheiros, de cores, de sentido.
Era uma casa cheia de música também. A mãe cantava sempre.  E era bonito esse seu cantar. E fazia roda e juntava gente.
A casa era cheia de alegria. Até porque, a  menina,desafinava e elas se riam, todos riam. E a casa era um riso só.

P.S.: olha a minha cara olhando a tela. A idéia era fazer uma experimentação. Sair escrevendo aelatoriamente e depois captar a minha cara.
Não compreendi nada de nenhuma das expressões (nem da escrita, nem da fotográfica).
Ok.

2 comentários:

  1. Vi todas as cores, senti o cheiro das tintas, ouvi as risadas e expiei como quem estivesse escondido num cantinho a vida dessas duas.
    Angústia, raiva e alegria, senti tudo ao mesmo tempo. Angústia por ter acabado, raiva do tempo, da imposição do tempo, de como a vida caminha por si só sem nada nos perguntar, sem nada nos consultar. Mas "feliz, feliz" porque a memória de tudo tem cores e sabores inesquecíveis. A memória vibra com tanta vida. "Feliz, feliz" porque as boas lembranças, as que merecem ser lembradas, estão alicerçadas, não como áncoras que torna tudo imóvel, mas como raízes que permitem a tudo subir...

    Que texto lindo, nega. Vi tudo na greta... rs, escondidinho. Água na boca com o queijo e o pão. (Estranho dizer isso agora mas...: Deus te abençoe.)

    xeru

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  2. A casa ainda é um riso, sempre que me fazes lembrar disso...

    Obrigado, mulher linda!

    E concordo com o comentário acerca da beleza do texto acima.

    WPC>

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